Transformação dos modelos de cuidados – alavancas para a mudança
No próximo dia 1 de abril dar-se-á continuidade na Universidade de Évora aos "Estados Gerais - Transformar o SNS", iniciativa promovida pela Fundação para a Saúde SNS. Nesta oportunidade, o tema central escolhido para debate foi: transformação dos modelos de cuidados - alavancas para a mudança.
A opção pela palavra "cuidados" em vez de "tratamentos" é explicada a seguir.
No âmbito das nossas atividades académicas tivemos a oportunidade de apresentar o cuidado como o principal determinante da saúde. Afirmámos tal, porque o cuidado, do ponto vista ontológico, é a essência do nosso ser e, consequentemente, do nosso comportamento, ou seja, das ações perante nós próprios, os outros e o ambiente. Tal forma de definir o cuidado engloba necessariamente o comportamento em saúde. E assim sendo, o cuidado está presente nos fatores comportamentais em saúde, os quais são responsáveis por 30% dos resultados em saúde, nos fatores sociais e económicos, responsáveis por 40%, nos fatores físicos e ambientais responsáveis por 10% e nos cuidados de saúde responsáveis pelos restantes 20%.
Nesta perspetiva, o cuidado tem inequivocamente potencial de promoção da saúde e de prevenção de doenças, logo é promotor da saúde pública. E esta é uma da mensagens-chave que pretendemos sublinhar e para a qual urge olhar com atenção.
Encarando o cuidado desta forma estamos a pensar em cada pessoa e cada comunidade como agentes de saúde. Consequentemente, estamos também a dizer da importância de, através da promoção da literacia em saúde, capacitar as pessoas e as comunidades para se assumirem como tal em toda a sua plenitude. Para tanto, é necessária uma estratégia preventiva e de promoção da saúde e, evidentemente, do necessário estímulo financeiro, sabendo que, neste momento, Portugal é dos países onde a percentagem do orçamento da saúde dedicado a esta finalidade é dos menores. Apenas 1%!
Se nada mais existisse além desta transformação dos modelos de cuidados, diríamos que, apenas esta, teria potencial para alterar o perfil epidemiológico a prazo. Todavia, o problema é mesmo o prazo ser sempre superior ao de uma legislatura!
Mas o cuidado é também determinante quando nos confrontamos com a doença. Em tal circunstância, precisamos compreender que a intervenção dos profissionais de saúde é limitada no tempo. Tal significa que, num contexto epidemiológico onde prevalecem pessoas com múltiplas doenças crónicas e com dependências a ela associadas, os responsáveis pela maioria dos cuidados (cerca de 80%) são os próprios doentes e/ou os respetivos cuidadores informais.
Então, nesta circunstância, que não restem dúvidas: o modelo de cuidados de saúde precisa obrigatoriamente de incluir todos os seus cuidadores, sendo inadmissível que fiquem de fora os responsáveis pela maioria dos cuidados. A inclusão do doente e dos cuidadores no modelo/processo de cuidados é a forma por excelência de dar centralidade e poder de decisão ao cidadão. Mas é também o caminho inequívoco para melhores cuidados e melhores resultados em saúde. O racional é simples: para todos os efeitos são estas pessoas que assumem os seus próprios cuidados (autocuidado); basta apenas imaginar que o fazem com mestria, porque devidamente conscientes e capacitados para tal (literacia).
Consciente disto a Organização Mundial de Saúde afirma que o autocuidado é a capacidade dos indivíduos, famílias e comunidades promoverem a sua própria saúde, prevenirem doenças, manterem a saúde e lidarem com doenças e incapacidades com ou sem o apoio de um profissional de saúde. Reconhece ainda os indivíduos como agentes ativos na gestão dos seus próprios cuidados de saúde em áreas que incluem a promoção da saúde; prevenção e controlo de doenças; automedicação; prestação de cuidados a pessoas dependentes; reabilitação; e cuidados paliativos. Consequentemente, publicou dois documentos que consideramos de importância fulcral (Classification of self-care interventions for health: a shared language to describe the uses of self-care interventions ; WHO Guideline on self-care interventions for health and well-being ).
Em outubro de 2022, a prestigiada revista Lancet, em editorial, vem fazer a apologia do autocuidado afirmando, entre muitas outras coisas, que existe uma evidência empírica crescente relativa à eficácia das intervenções de autocuidado nos campos das doenças transmissíveis, doenças não transmissíveis, saúde mental, saúde sexual e reprodutiva e dos direitos dos doentes.
Assim, haverá que prever e incluir no Plano Nacional de Saúde 2021-2030 esta dimensão do autocuidado, ainda ausente.
Uma perspetiva a considerar como outra das transformações estruturais dos modelos de cuidados é a da assunção inequívoca do cuidado como organizador de todo o processo, com todos os cuidadores devidamente assumidos e já agora, com indicadores de resultados a condizer. Para além dos indicadores já conhecidos como os associados à funcionalidade, a OCDE propôs dois grupos que dão centralidade aos doentes: os indicadores de resultados reportados pelo doente; e os indicadores de experiências reportadas pelo doente.
Tudo isto e muito mais se discutirá na Universidade de Évora no próximo 1 de abril.
*Professor Coordenador Principal - Universidade de Évora e Investigador no Comprehensive Health Research Centre