"O ministro da Saúde não tem autonomia e as Finanças não sabem o que é ter uma pessoa na urgência"
A falta de estabilidade nas políticas é um dos problemas do país para a ex-ministra da Saúde. Aponta o dedo aos ministros seguintes que desfizeram o que ergueu no setor e diz que "o novo Estatuto do SNS tem de ser alterado e tem erros".
Foi presidente do PS, deputada, candidata à Presidência da República, trabalhou no governo com Maria de Lourdes Pintassilgo, mas quando se fala publicamente em Maria de Belém é da antiga ministra da Saúde que nos recordamos. Numa altura em que a saúde passa outra vez por alterações estruturais depois da criação da função do diretor executivo, a antiga responsável da pasta analisa o Serviço Nacional de Saúde (SNS) que, atualmente, não está a conseguir dar resposta a todas as necessidades.
Esteve como ministra durante quatro anos, entrou em 1995, há quase 30 anos e tentou já nessa altura fazer uma reforma do SNS. 30 anos depois como é que olha para o estado do SNS?
30 anos depois, olho para o estado do SNS como sendo um estado que decorre de não se terem dado os passos certos em devida altura. Se bem se recordam, na altura em que estive no Ministério da Saúde, havia duas prioridades estratégicas no governo. Uma delas a luta contra a pobreza e a outra a educação. Aliás, é nessa altura que se investe muito no ensino pré-escolar, precisamente porque já havia evidência de que as crianças que frequentam o pré-escolar depois têm mais sucesso no seu percurso de escolaridade. A saúde não era uma prioridade estratégica e muitas vezes os vossos colegas me perguntavam "então, mas se não é prioridade estratégica, porque é que aceitou?" E eu disse "porque lutar contra a pobreza e investir na educação a prazo é ótimo para a saúde. Como bem disseram, não tinha o financiamento adequado para levar a cabo de repente um conjunto de reformas estruturais, aliás também é muito complicado fazê-lo na saúde porque é uma área que além de extraordinariamente complexa é preciso envolver todos os atores, o que obviamente exige tempo. Mas investi muito em experiências inovadoras que avaliadas foram todas consideradas ótimas. Só que eu saí e acabou tudo. E uma das coisas que me incomoda muito que tenha acabado foi a rede das escolas saudáveis. Porque com a rede das escolas saudáveis, que foi feita com o ministro da Educação Eduardo Marçal Grilo, imagino a situação hoje, quase 30 anos depois de ter tido esse investimento nas escolas junto das crianças. Porque a lógica era investir na literacia em saúde junto dos mais jovens, porque tinha dado bom resultado o investimento que se fez relativamente à proteção do ambiente. Quando entrei para o ministério havia cinco, seis escolas promotoras de saúde, quando saí existiam mais de mil e um programa fantástico entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação. Depois, obviamente, há outras coisas que foram muito importantes e uma delas foi uma articulação muito sustentada e muito bem vivida pelas duas áreas de saúde e segurança social, porque são duas áreas irmãs. Nós não podemos separá-las em termos de governação sob o mesmo chapéu, mas evidentemente que além dos chapéus está aquilo que precisam as pessoas. Eu dei-me muito bem com o Ferro Rodrigues, tinha também uma visão muito esclarecida sobre a problemática, fizemos uma série de coisas que considero que foram importantes, desde a simplificação dos atestados médicos e simultaneamente também o combate à fraude nessa área. Também a identificação dos critérios daquilo que era a responsabilidade da saúde e da segurança social para a construção da rede de cuidados paliativos, cuidados continuados, ninguém fala destes temas, mas são importantes em termos locais, porque tem de haver um grande entrosamento entre a saúde e a segurança social. Referir também as experiências dos projetos alfa que deram origem às unidades familiares tipo B. Foi nessa época que se investiu e foi aprovado um regime remuneratório experimental associado ao mérito e muitas outras coisas como as unidades locais de saúde, de um projeto de gestão inovadora no Hospital da Feira que permitia, por exemplo, que nas urgências trabalhassem articuladamente o hospital e os centros de saúde da área. Ou seja, a questão das pulseiras verdes e amarelas não se punha. Aliás, agora colocou-se em concretização um projeto dessa natureza precisamente para aliviar a urgência hospitalar daquilo que não é da sua competência e construiu-se pela primeira vez as agências de contratualização para que o orçamento deixasse de ser o histórico. Eu não posso ter remunerações por mérito se não avaliar quem é que merece. E outra coisa também muito importante, e que às vezes vos passa despercebido, é o seguinte: tínhamos um modelo de reforma dos cuidados de saúde primários através dos projetos de alfa que depois iriam evoluir e tínhamos para os hospitais os centros de responsabilidade integrada que também permitiam remunerações com base no mérito. Um centro de responsabilidade integrado tinha uma direção que contratualizava com a administração do hospital e depois fazia uma gestão inteligente das remunerações das pessoas. O que é que se passa atualmente? Temos nos cuidados primários duas realidades: os médicos e os profissionais de saúde que estão integrados em unidades de saúde familiar modelo B recebem em função do desempenho e, portanto, há uma desigualdade enorme e injusta entre os profissionais de saúde que praticam o mesmo tipo de atos.
Ou seja, é um fator para não retenção também desses médicos nos hospitais?
Com certeza, se a pessoa não tem um estímulo, não tem objetivos, não tem coisa nenhuma, fica muito incomodada.
Dessas primeiras palavras que disse, posso deduzir que tem alguma mágoa ainda por não ter continuado no ministério?
Não tenho nada mágoa por não continuar no ministério, porque não pedi para ser ministra e o meu objetivo de vida não foi ser ministra. Agora, se estou ministra é para fazer coisas e as coisas devem ser continuadas.
Mas depois passou a ministra da Igualdade, houve um ponto de rutura nessa altura.
Não, não houve rutura nenhuma.
Mas deixou de ser ministra da Saúde e passou a ser ministra da Igualdade.
Sim, mas isso não é uma rutura. Não há ninguém que tenha mais sensibilidade para as questões da igualdade do que alguém que percebe que a desigualdade mata.
Está a dar uma resposta política.
Não é política, é verdadeira.
No segundo governo de António Guterres não continua na mesma pasta e na altura houve até polémica política com isso, mas a minha questão não era reavivar a polémica, era perguntar se sente que deixou alguma coisa por fazer?
Com certeza, sou absolutamente crítica em relação à falta de estabilidade nas políticas, porque repare, se eu invisto num determinado sentido, se esse sentido é sufragado pelo governo e depois pela Assembleia da República, se estou sempre a desfazer o que os outros deixaram feito...
E foi isso que aconteceu consigo?
Aconteceu comigo e com vários outros ministros
E esse é um dos grandes problemas da falta de reforma do SNS?
Esse é um dos grandes problemas no nosso país. Porque quem entra, como é evidente, tem as suas ideias e tem o direito de deixar a sua marca, mas deixar a sua marca pela positiva e não pelo que desfez. Isso é que eu acho que é importante. Eu aproveitei tudo o que os meus antecessores tinham deixado em ação.
E acha que o seu trabalho foi desfeito?
Em muitas áreas foi desfeito. Já lhe dei o exemplo das escolas saudáveis ou das escolas promotoras da saúde. Já lhe dei o exemplo de todas as experiências inovadoras que ficaram completamente paradas e sobretudo ter-se retirado todos os instrumentos que as identificavam de alguma maneira e que eram indispensáveis para que produzissem o seu sentido. Uma coisa que por acaso não acabou, mas que foi desvirtuada, foi a tal contratualização dos investimentos, porque não posso ter essa contratualização em função de objetivos se não lhe acrescentar uma capacidade de avaliação da qualidade clínica, daquilo que é feito clínica e humanamente. E depois com certeza que há todo um conjunto de outros aspetos que são essenciais, como garantir a paz social e as pessoas saberem para onde se caminha e esta foi a primeira vez em que existiu um planeamento estratégico.
O que é que aconteceu depois?
O que aconteceu depois foi que continuaram os planos de ação de saúde, mas entregues à Direção-Geral da Saúde, meu tempo o plano estratégico era conduzido pelo próprio ministro e pelas pessoas com quem fazia equipa. Muitas vezes a seguir se fizeram coisas soltas e nós precisamos de saber qual é a política de saúde, qual é a missão do SNS.
E continuamos sem saber qual é a política de saúde?
Não, quer dizer, já passaram pelo ministério muitas pessoas que sabiam o que tinham de fazer. Umas com mais dificuldade do que outras porque passamos a vida em crise, saltamos de crise em crise. Mas, como é evidente, quando há alguém que percebe do assunto, que sabe para onde vai e onde quer ir, normalmente acaba por mudar de função e isso leva também a que haja rutura na continuidade das políticas.
Se pudéssemos resumir numa frase, posso deduzir da sua opinião que a responsabilidade do atual estado do Serviço Nacional de Saúde é uma responsabilidade iminentemente política dos ministros da Saúde e dos primeiros-ministros desde 1995?
Não, não pode retirar isso das minhas palavras. Porque como há muitas pessoas que intervêm nestas coisas, há uma responsabilidade global partilhada. Eu também posso dizer que há dos cidadãos, porque nós não temos o hábito de exercer os nossos deveres de cidadania, que é questionar porque é que determinadas coisas não são feitas em um determinado sentido. Portanto, há aqui uma sociedade, uma forma de comportamento global em que os cidadãos muitas vezes não exigem porque também não estão capacitados e os próprios governos estão sempre muito preocupados com o acontecimento do dia e não pensam a prazo. E há áreas em que é essencial, evidentemente, tomar conta das questões do dia, mas é fundamental pensarmos para onde é que vamos, para onde é que queremos ir e envolver as pessoas com esse objetivo.
E hoje neste governo continua a faltar essa visão de longo prazo daquilo que a saúde deverá ser no futuro?
Não, repare, eu já disse isto uma vez numa entrevista que dei, porque quando saí do Ministério da Saúde deixei um plano de formação de recursos humanos, porque é evidente que temos os mapas com a idade das pessoas, sabemos as especialidades que temos, sabemos e sabíamos que o país ia envelhecer e, portanto, há todo um conjunto de medidas que têm de se tomar. Se um médico nas especialidades que demoram mais tempo a alcançar demora hoje, talvez, menos um ano do que antes, mas na altura demorava cerca de 14 anos, eu tenho de programar isto a prazo. Tenho de programar, isto é, tenho o meu plano de integração de especialistas no ano 2023, mas já tenho de estar a pensar no que é que vai acontecer em 2030.
E não se está a planear nesse tempo?
Agora está a planear-se, mas é preciso que haja capacidade de planeamento.
A ausência de continuidade, a ausência de planos de longo prazo e a ausência em muitos casos de investimento, porque a saúde não foi em muitos governos do PS e do PSD prioridade, posso concluir que a responsabilidade do estado atual do SNS é, sobretudo, da gestão política dos ministros e dos primeiros-ministros.
Não, é dos ministros, dos primeiros-ministros, dos parlamentos, da sociedade em geral, evidentemente e os próprios profissionais da área, quando reivindicam coisas. Porque, repare, nós temos os maiores talentos do país em termos de quantidade, não só as notas para acesso às profissões são muito exigentes, são das mais elevadas, mas temos realmente gente muito capaz, gente completamente fantástica. E, portanto, essas pessoas têm de pensar, têm de ajudar a pensar e têm de ajudar a construir aquilo que é realmente a responsabilidade do SNS. Porque o SNS não se pode estragar, porque não há ninguém que possa dispensar o SNS. Pode dispensar hoje, mas de certeza que há de acontecer alguma coisa na sua vida em que percebe a importância vital, porque é de vida e de morte que nós estamos a falar ou de vida e capacidade ou incapacidade, não é dispensável, sobretudo numa época em que nós temos cada vez mais inovação à disposição das pessoas e a inovação transforma normalmente doenças fatais em doenças crónicas ou até as cura. Nós temos indicadores de saúde que comparam muito bem com os outros países em quase todos os domínios. Onde é que nós não comparamos bem? Nos anos de vida saudáveis depois dos 65 anos, em que temos uma diferença relativamente aos países nórdicos, que são aqueles com quem nos comparamos e por vezes até temos desempenho melhor, por exemplo, na mortalidade infantil ou na esperança de vida. Agora, o que nós temos é gente que vive muitos anos, mas muitos anos com doença e se não apostarmos na promoção da saúde, vamos estar sempre a ter de tratar doenças evitáveis, doenças que poderiam não acontecer e depois, obviamente, os recursos não são ilimitados, sobretudo num país como o nosso, que tem tantos problemas.
Vamos também falar de um outro assunto muito importante para a saúde, que é este novo estatuto do SNS. Acredita que vai ser mesmo implementado? Tem havido uma grande discussão acerca dele e se não seria necessário também ir mais rápido na implementação desse estatuto? Qual é a sua análise?