A FSNS divulga o seu mais recente apelo, para a transformação, reforço e salvaguarda do SNS, que foi publicado hoje no Jornal Público, subscrito por um vasto conjunto de personalidades que têm em comum a defesa do SNS.
Primeiro - Propósito
A pandemia COVID-19 evidenciou o elevado valor social, bem como a adaptabilidade e a prontidão do Serviço Nacional de Saúde (SNS) enquanto dispositivo universal e solidário de proteção de toda a população. Evidenciou também fragilidades estruturais preexistentes, resultantes de inércias e do desinvestimento prolongados por décadas. Hoje, estamos perante uma oportunidade de mudança que deve ser aproveitada ao máximo. São urgentemente necessários uma estratégia, um discurso e ações de mudança que reacendam a esperança no futuro do SNS.
Segundo - Conceção e gestão da mudança
A superação de fragilidades e o relançamento do SNS requerem a combinação de duas linhas convergentes: reforço de recursos necessários e transformação adaptativa do SNS aos desafios dos nossos dias. Este processo requer um dispositivo de análise e direção estratégica com o propósito de reforçar e transformar o SNS, o qual deverá prosseguir como finalidades: compreender comportamentos e aspirações dos atores sociais, enquadrá-los e direcioná-los através de um vasto conjunto de instrumentos, uns notórios e outros subtis, atuando combinadamente, para além das normas e das ações de comando-e-controlo.
Terceiro - Aspetos críticos a abordar simultaneamente
- Acesso aos cuidados – Direitos e deveres dos cidadãos – zelar pelo cumprimento das leis que garantem o direito de acesso aos cuidados qualificados que necessitam, em tempo aceitável para a situação clínica – com destaque para a Lei Constitucional e para a Lei n.º 41/2007 (DR n.º 163, I Série, de 24.08.2007) da Assembleia da República - Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos utentes do Serviço Nacional de Saúde. Fomentar a participação por parte das pessoas, com ou sem doença e seus representantes, nas decisões que afetam a saúde de todos, e incentivar a tomada de decisão em saúde assente numa ampla participação pública (Lei 108/2019 de 9 de setembro). As desigualdades de acesso, designadamente em localidades isoladas, no interior, devem ser alvo de atenção e medidas especiais.
- Integração de cuidados centrada na Pessoa e suas circunstâncias – reconhecer, valorizar e replicar iniciativas em curso e desenvolver modelos inovadores de integração de cuidados centrados nas pessoas, assentes, por exemplo, num processo público de candidaturas. Estes projetos deverão envolver sempre vários parceiros (cuidados de saúde primários, hospitais, cuidados continuados, sector social) e ter em conta os percursos de vida e as necessidades de cuidados, visando a promoção e a cocriação de saúde e bem-estar.
- Análise e direção estratégicas – através de um dispositivo estável e competente que assegure, com continuidade, as funções de análise e de direção estratégica para garantir coesão, integração, coerência e direção adequadas para transformar o complexo, fragmentado e desligado edifício que é, atualmente, o SNS – conferindo-lhe robustez, consistência e sinergias na ação, em particular com o sector social, e informando políticas de financiamento e de recursos humanos de médio e longo prazo;
- Política para as profissões de saúde – definir e concretizar uma política avançada e de planeamento integrado, flexível e adaptativo, de formação, retenção e desenvolvimento contínuo dos profissionais, sendo pilares essenciais: a) as carreiras profissionais enquanto instrumento e estímulo para o desenvolvimento e valorização profissionais contínuos; b) um núcleo humano estruturante próprio, ao qual acedam voluntariamente e em função do mérito os melhores profissionais que desejem dedicar-se exclusivamente ao SNS e ao seu desenvolvimento técnico-científico, social e organizacional; c) dinâmicas de trabalho em equipas multiprofissionais e interinstitucionais visando otimizar e maximizar todas as competências instaladas no SNS, sempre guiadas para a integração de cuidados centrada nas pessoas e suas circunstâncias; d) uma cultura de qualidade de serviço e de satisfação profissional, proporcionando condições de trabalho e organizacionais que levem os profissionais a optar pelo serviço público de saúde.
- Governança da saúde e formação de dirigentes - desenvolver estratégias de seleção, recrutamento, formação e desenvolvimento contínuos de dirigentes, enquadradas e inspiradas por uma cultura avançada de governança em saúde, que permita transformar o SNS, visando obter melhores resultados de saúde e bem-estar para todos - a formação, a investigação e o desenvolvimento de processos e de uma rede de governação clínica e de saúde surgem como prioridades imediatas a prosseguir;
- Sistema de informação e de gestão do conhecimento – desenvolver uma visão estratégica e uma arquitetura sistémica para o sistema de informação e para a gestão do conhecimento, do SNS e da saúde do cidadão. Haverá que estabelecer com a celeridade possível, e como medida prioritária, a interoperabilidade entre aplicações informáticas, possibilitando maior centragem no cidadão e nas finalidades e objetivos de saúde – com destaque para o plano individual de cuidados enquanto instrumento decisivo para a integração de cuidados;
- Financiamento, investimento e modelo de governação – desenvolver dispositivos de governação para melhorar as políticas orçamentais, a transparência e a confiança entre todos, promovendo a autonomia e a responsabilização dos órgãos de administração e de gestão intermédia e institucional, e prevenindo défices e juros. Especial prioridade deve ser dada, pela relevância social e atual fragilidade organizacional, aos domínios da promoção da saúde e da saúde pública, à saúde mental, aos cuidados na morbilidade múltipla e dependência, com reforço dos cuidados no domicílio e continuados, aos cuidados paliativos, sempre com abordagens integradas, em redes de proximidade, onde a intersetorialidade e a participação comunitária sejam dinâmicas dominantes;
- Coexistência regulada entre o sector público solidário, o sector social e a atividade privada de mercado – estabelecer dispositivos inteligentes para aproveitar eficientemente as capacidades instaladas e contrabalançar, de modo efetivo e socialmente proveitoso, os interesses de mercado na área da saúde que possam conflituar com o interesse público, fazendo prevalecer os princípios da equidade, da solidariedade, da macro-eficiência sistémica e do bem-comum.
Quarto - Ampla participação e combate à indiferença
A resposta aos desafios da atualidade requer que um Estado inteligente e uma “sociedade civil” ativa se constituam como duas faces de um mesmo processo. Para isso, é fundamental desenvolver competências para a gestão da mudança no sistema complexo que é o SNS e promover a transição de construções hierarquizadas para comunidades horizontais inteligentes, interdependentes e colaborativas, disponíveis para os riscos, turbulências e incertezas associados a estes processos. O aperfeiçoamento da comunicação, interna e externa, e o desenvolvimento de mecanismos de participação, a todos os níveis, são requisitos críticos para a mudança desejada.
A tomada de consciência e a caracterização mais precisa dos desafios, sendo condição necessária, não é suficiente. É imprescindível atuar de modo articulado e concertado em todos eles, gerindo as consequências que cada mudança num ponto suscite ou determine nos restantes pontos do todo sistémico. A educação para a cidadania, que inclui a educação para a saúde e a defesa do SNS, são fatores promotores da solidariedade social e da saúde. Estamos perante uma responsabilidade coletiva de um vasto conjunto de atores com níveis e naturezas de responsabilidade diversas, mas em que cada um tem um papel a desempenhar.
Quinto – Aprender e evitar erros do passado
A continuidade de governança estratégica e técnico-científica e o desenvolvimento de uma cultura crítica de organização aprendente contribuirão certamente para evitar repetir erros do passado ou atuar sem suficiente base de análise, como, por exemplo: acreditar que a transformação consiste numa reconfiguração organizacional; “municipalizar”, desintegrando o SNS; digitalizar, fora do âmbito de uma estratégia de mudança; proceder a reformas parciais ou setoriais, sem um fio condutor comum; entre outros.
Sexto - Atuar já!
O reforço e as transformações necessárias do SNS são urgentes, são possíveis e merecem o contributo e a ação de todos, naquilo que estiver ao alcance de cada um fazer: decisores políticos a todos os níveis, profissionais, cientistas, e cidadãos em geral.
Subscrevem: Alberto Martins, Alcindo Maciel Barbosa, Alexandre Lourenço, Ana Escoval, Ana Jorge, António Leuschner, António Reis Marques, António Rodrigues, Armando Raimundo, Carlos Alberto da Silva, Carlos Monjardino, Celeste Gonçalves, Célia Antunes, Constantino Sakellarides, Diana Costa, Eunice Carrapiço, Fátima Garcia, Fernando Paulouro, Germano de Sousa, Isabel Abreu, Isabel Loureiro, Jaime Correia de Sousa, J. Aranda da Silva, João Carlos Moreira da Silva, João Correia da Cunha, João Ramires, João Redondo, José Carlos Santos, José Luís Biscaia, José Manuel Boavida, José Manuel Pureza, José Marmeleira, José Poças, Júlio Machado Vaz, Luiz Gamito, M. Augusta Sousa, Manuel Alegre, Manuel Carvalho da Silva, Manuel Lopes, Manuel Schiappa, Manuel Sobrinho Simões, Maria de Belém Roseira, Marta Cerqueira, Marta Salavisa, Natércia Miranda, Nuno Jacinto, Patrícia Barbosa, Paula Broeiro-Gonçalves, Pedro Lopes Ferreira, Pedro Maciel Barbosa, Rita Correia, Rui Lourenço, Rui Melo Pato, Rui Monteiro, Rute Borrego, Tânia Varela, Teresa Gago, Victor Ramos, Vítor Melícias.