Em parceria com o Diário de Notícias a FSNS divulga o Projeto Transformar o SNS - 10 Teses para a mudança
Tese IIa - Promoção de Saúde, percursos de vida envelhecimento com Manuel Lopes e Pedro Maciel Barbosa.
Promoção de Saúde, percursos de vida e envelhecimento - a urgência de novas respostas
Estamos a viver uma transição demográfica e epidemiológica, ou seja, vivemos muito mais anos e passámos a ter uma clara prevalência de doenças crónicas, principalmente sob a forma de multimorbilidade. Estas já representam cerca de 50% da carga global de doença e resultam num incremento da pressão sobre o Sistema de Saúde e Segurança Social e particularmente sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Tais factos relevam a importância do percurso de vida, porque a saúde física e mental e o bem-estar de uma pessoa são influenciados pelos múltiplos determinantes da saúde. A abordagem do ciclo de vida concentra-se num início de percurso saudável e visa as necessidades das pessoas em períodos críticos, harmonizando as respostas às necessidades das diferentes gerações.
As respostas que se estão a dar em Portugal a este fenómeno não têm sido suficientes. Os hospitais especializados na resposta à doença aguda e/ou agudização da doença crónica, não têm demonstrado igual capacidade na gestão da multimorbilidade; os cuidados de saúde primários mantêm limitações de cobertura nacional e adaptação difícil à transição epidemiológica; os cuidados continuados permanecem com um nível de desenvolvimento muito limitado, de tal modo que apenas 1,9% dos adultos com 65 ou mais anos de idade os recebem (OCDE); os cuidados paliativos estão longe de responder adequadamente às necessidades; e os ditos "cuidados sociais" são uma rede paralela e não integrada.
O SNS revelou alguma capacidade de adaptação ao desenvolver diferentes respostas de proximidade, todavia resultou em maior proliferação e fragmentação de cuidados. Assim, em 2006, a Rede Nacional de Cuidados Continuados (RNCCI) lançou as Equipas de Cuidados Continuados Integrados. Em 2012, as equipas comunitárias de suporte em cuidados paliativos deixaram a RNCCI e integraram a Rede Nacional de Cuidados Paliativos. Em 2018, criou-se a Estratégia Nacional de Unidades de Hospitalização Domiciliária. Porém, quando a DGS emitiu a norma sobre a articulação com os restante níveis de cuidados, refere-se apenas duas vezes à RNCCI e a palavra "integração" surge uma vez. Por outro lado, a multiplicação de siglas confunde o cidadão, indicia falta de coordenação e ausência de uma abordagem estratégica.
A este cenário juridicamente pesado e organicamente confuso, acresce que cada uma das soluções tem profissionais não partilhados, coordenação, indicadores e modelos de contratualização separados, viaturas, espaços e materiais próprios e sistemas de informação distintos e sem interoperacionalidade.
Por todas essas razões, urge a Transformação!
Requer-se uma intervenção estruturada em dois vetores: uma resposta às atuais pessoas idosas; uma outra dirigida à população em geral e que tenha como objetivo promover a saúde ao longo do percurso de vida e criar condições para um envelhecimento mais saudável.
A primeira visa dar resposta às excecionais necessidades da atual população idosa e deve ser estruturada com base num modelo de cuidados que privilegie a proximidade e a domiciliação. Tal modelo deve oferecer cuidados:
- facilmente acessíveis, na comunidade, sem barreiras físicas (e.g., distância) ou financeiras;
- centrados na pessoa ao invés de centrados na doença ou no órgão;
- que garantam a integração e a continuidade entre os vários níveis de cuidados incluindo os sociais;
- que assumam as pessoas como decisores ativos considerando as suas expectativas.
A segunda (dirigida à população em geral) deve privilegiar as intervenções de promoção e prevenção da doença ao longo do percurso de vida, começando com os desafios do desenvolvimento infantil e juvenil e procurando responder equilibradamente às necessidades de saúde do todas as gerações. As políticas públicas devem ter a inteligência e a clarividência de, em saúde, se focarem e dedicarem recursos e investimento prioritariamente a montante, isto é, no que promove e mantém a saúde - autocuidado e todos os determinantes da saúde.
A obtenção de elevados níveis de saúde e bem-estar para todos está alinhado com os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ONU) e por isso pode e deve ser um objetivo mobilizador para a sociedade.
Como forma de aferir a transformação, urge a criação de uma métrica que nos sirva de monitor e nos permita perceber o sentido e intensidade da mesma. Assim e nesta área em concreto, propomos:
- Definição de um orçamento plurianual centrado em objetivos de saúde, com uma componente orçamental dedicada à promoção da saúde e prevenção da doença, através da definição de critérios de financiamento de instrumentos horizontais de comunicação e literacia em saúde.
- Definição de uma estratégia integrada entre Ministério da Saúde, da Educação e Ensino Superior que vise o incremento da literacia e de estilos de vida saudáveis durante todo o percurso educativo.
- Coordenação integrada entre Ministério da Saúde e da Segurança Social da rede de saúde e suporte social para a gestão de internamentos evitáveis e processos de isolamento social e familiar;
- Criação de uma rede de cuidados integrados no domicílio única, coordenada, com diferentes soluções de cuidados, resultante da RNCCI, RNCP e UHD; e suportada em sistemas de informação como o processo eletrónico comum e plano individual de cuidados;
- Desenvolver modelos de contratualização de cuidados de proximidade baseada em indicadores que vão além da doença nomeadamente, medidas de capacidade funcional, independência, qualidade de vida e bem-estar em todos os níveis de cuidados.
Manuel Lopes é professor Coordenador Principal na Universidade de Évora
Pedro Maciel Barbosa é fisioterapeuta na Unidade Local de Saúde de Matosinhos
Transformar o SNS. "Somos um país envelhecido, e ainda bem"
O SNS A esperança média de vida em Portugal é superior a 80 anos, um indicador de desenvolvimento positivo. Contudo, a qualidade de vida acima dos 65 anos e o nível de carga de doença ainda são muito elevados. Trabalhar esta métrica é um desafio de curto e médio prazo.
Portugal tinha, em 2021, cerca de 4000 pessoas com mais de 100 anos, segundo dados da Pordata, que estima que nas próximas três décadas, até 2050, este número possa ultrapassar os 10 mil. Um cenário que, na perspetiva Manuel Lopes, é muito positivo porque significa que conseguimos criar condições para as pessoas chegarem a esta idade. "Somos um país envelhecido, e ainda bem", diz o professor na Escola Superior de Enfermagem São João de Deus, na Universidade de Évora, que marcou presença no segundo podcast Transformar o SNS, cujo tema foi, precisamente, "Promoção de Saúde, percursos de vida e envelhecimento - a urgência de novas respostas". No entanto, o professor reconhece a dificuldade em combater a carga de doença que ainda é muito elevada acima dos 65 anos. A solução, aponta, passa por desenvolver um conjunto de estratégias de promoção de saúde e de prevenção de doença ao longo de todo o percurso de vida, e não apenas em fases mais avançadas. "O investimento nestas políticas tem resultados garantidos, embora não a curto-prazo", reforça.
Uma opinião partilhada por Pedro Maciel Barbosa que acrescenta que estas políticas podem, e devem, funcionar sob a perspetiva da prevenção, numa lógica de rastreios ou de vacinação, mas também numa lógica de reforço dos momentos saudáveis. "Esta última passa por comportamentos positivos para esse contributo - tais como fazer exercício e manter uma alimentação equilibrada -, e que todos conhecemos", explica o fisioterapeuta na ULS Matosinhos, que participou também no podcast organizado pelo DN. "O que estamos a tentar sugerir é que a reflexão da saúde seja feita ao longo do percurso de vida das pessoas".
Porém, defendem os especialistas, a educação para a saúde é uma componente essencial para que as pessoas tenham informação, tomem melhores decisões, e possam gerir a sua saúde ao longo da vida. "E essa educação tem de ocorrer não só na escolaridade obrigatória, mas também ao nível do ensino superior", salienta, recordando o estudo recente que demonstra que o nível de literacia dos estudantes, docentes e investigadores do ensino superior, é baixo. Portanto, "percebemos que estas ferramentas de educação devem acompanhar todo o percurso das pessoas e todos os traços socioeconómicos, mantendo uma maior preocupação com aqueles que são mais pobres ou têm menor literacia, porque a evidência científica é cabal, e o risco de terem doenças físicas e mentais é muito maior nestes estratos sociais".
Sobre a promoção de competências, Manuel Lopes reforça a importância de fazê-lo em qualquer fase da vida. "Se for para aplicar em pessoas mais idosas, até podemos conjugar a promoção da literacia com outro tipo de estratégias que também contribuem, por exemplo, para aumentar o convívio entre gerações e combater a solidão", sugere.
Estes desafios exigem muita reorganização e gestão, o que significa que há muito trabalho a fazer. Por exemplo, diz Manuel Lopes, "se formos analisar o Plano Nacional de Saúde, talvez o mais importante instrumento de planeamento estratégico em saúde em Portugal, não encontramos referência à multimorbilidade e à abordagem da multimorbilidade e dependência, que é uma realidade absolutamente avassaladora". Estas questões, defende, têm de ser colocadas em cima da mesa e discutidas, porque requerem o contributo de todos. Uma das estratégias que este grupo de trabalho propõe, acrescenta Pedro Maciel Barbosa, é uma reflexão sobre os cuidados de proximidade ou os cuidados domiciliários. "É algo que o SNS tem transformado, encontrou soluções, mas infelizmente, estão fragmentadas e este é o momento certo para voltar a repensá-las".
Para conhecer melhor estas propostas não deixe de ouvir o podcast, disponível a partir de hoje no site do DN.