Em parceria com o Diário de Notícias a FSNS divulga o Projeto Transformar o SNS - 10 Teses para a mudança
Tese IIb - Desafios da Saúde Mental com Joaquina Castelão, José Carlos Santos e António Leuschner.
Transformar o SNS. Desafios da saúde mental
Apromoção da saúde e prevenção da doença mental
Os últimos dois anos conferiram à saúde mental - sem a qual não há saúde, como proclama a OMS - uma maior visibilidade, seja pelos impactos da pandemia, pelos efeitos da guerra na Ucrânia ou de assassínios em massa.
E não apenas sobre os diretamente implicados, mas, de uma forma transversal, às comunidades em geral, constituindo um verdadeiro problema de saúde pública, dando corpo ao que os vários atores da área, utentes, famílias, profissionais e académicos, vinham clamando há décadas.
Impõe-se, assim, que na generalidade dos serviços de saúde, dos cuidados de saúde primários aos continuados, lhe seja dada a devida atenção, para o que deverão ser dotados de profissionais com competências próprias para desenvolver ações de promoção da saúde mental, detetar precocemente situações de risco ou garantir uma continuidade de cuidados eficaz.
Dessa forma se facilita o acesso a cuidados adequados e se contribui para reduzir o estigma - a que ainda hoje está votada uma parte significativa das pessoas com doença mental, em especial as de maior gravidade -, garantindo, se necessário, uma referenciação atempada.
Intervenção na doença mental
Apesar de a saúde mental dever merecer atenção em todos os contextos, tal não significa que os serviços de saúde mental - integrados na rede geral de cuidados de saúde - não devam ser dotados dos recursos materiais e humanos necessários às suas funções, em particular quando se tornem necessárias intervenções multiprofissionais especializadas, com especial atenção às pessoas com doença mental grave.
É indesmentível que a saúde mental não tem tido a atenção nem os recursos adequados ao relevo que ora lhe é reconhecido, apesar das iniciativas tomadas nos últimos anos quer ao nível do planeamento, quer legislativo e normativo, permitindo reorganizar os serviços de saúde mental e melhorar a sua integração com os restantes cuidados de saúde, para o que será fundamental um sistema de informação acessível e centrado no cidadão.
Dessa forma se promove uma maior equidade e a melhoria do acesso a cuidados de saúde de proximidade, com qualidade, com respostas de reabilitação e reintegração social e profissional, bem como a continuidade de cuidados ao longo da vida às pessoas que sofrem de doença mental grave, a quem é fundamental disponibilizar os recursos terapêuticos apropriados.
O acesso a cuidados integrados e de proximidade através de serviços locais de saúde mental - para a infância e adolescência e para adultos - distribuídos pelo território nacional e com foco particular na atividade comunitária, permitindo o diagnóstico atempado, o tratamento e acompanhamento adequados às necessidades da pessoa com doença mental e da sua família, constitui um desafio imprescindível.
O trabalho em rede, com as famílias, estruturas da comunidade e instituições do setor social, assume particular relevância na prestação e continuidade de cuidados ao longo da vida, promovendo respostas intersetoriais (saúde, educação, habitação, Segurança Social, justiça, finanças, entre outras) tão necessárias.
O Plano de Recuperação e Resiliência contempla medidas destinadas às pessoas com doença mental grave e crónica e que, se implementadas nos termos propostos e com financiamento adequado, darão resposta a algumas das pessoas com doença mental grave que ainda permanecem em hospitais psiquiátricos.
Famílias cuidadoras e parceiras
A família deve ser incluída no processo de tratamento e de reabilitação como alvo e parceira, assim como na definição, monitorização e avaliação de medidas e políticas.
Medidas de apoio ao cuidador são fundamentais, contemplando todas as situações em que o cuidador tem de prescindir ou diminuir a sua atividade laboral para cuidar, não esquecendo o descanso periódico do cuidador, medida a implementar e da maior importância para promover a saúde e bem-estar e prevenir o burnout.
Os serviços devem ser objeto de acompanhamento e monitorização, incluindo a avaliação de resultados da qualidade de cuidados e satisfação, levados a cabo por equipas que incluam os utilizadores e seus representantes, dando cumprimento à Lei de Bases da Saúde e demais legislação aplicável.
Profissionais de saúde
A carga sobre os profissionais de saúde aumenta, assim como a complexidade crescente da tomada de decisões, com perda de autonomia, sem uma compensação justa e, muitas vezes, com uma sobrecarga de tarefas administrativas que os afastam da essência das suas funções, o que pode justificar a saída dos profissionais e até o risco de abandono da profissão.
Assim, as abordagens para mitigar, reduzir e resolver eventuais situações de burnout devem ser multifacetadas e incluir intervenções para melhorar as condições do local de trabalho, promovendo uma cultura de apoio, relacionamentos, desenvolvimento e liderança com foco individual e de grupo.
Monitorização
Este ambicioso desafio deverá ser continuadamente acompanhado e avaliado, com particular atenção:
- Ao desenvolvimento da rede de serviços locais e de equipas comunitárias para a infância e adolescência e para adultos;
- À continuidade de cuidados, particularmente das respostas de proximidade para a doença mental grave;
- À articulação com os cuidados primários, especializados e respostas na comunidade;
-À estrutura e funcionamento da rede nacional de cuidados continuados integrados de saúde mental para a infância e adolescência e para adultos;
- Ao acompanhamento das famílias.
Esta monitorização, instrumento privilegiado do desenvolvimento na área da saúde mental, deverá ser periódica, rigorosa e amplamente partilhada, porque a saúde mental é tarefa de todos.
Joaquina Castelão é presidente da Federação Familiarmente;
José Carlos Santos é professor coordenador da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra;
António Leuschner é presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental.
"É importante a sociedade compreender a necessidade de investir na saúde mental"
Em pleno século XXI, ainda existe um estigma associado à doença mental que é preciso eliminar. O diagnóstico e acompanhamento dos doentes é fundamental para que ganhem anos de vida, e que para que mantenham a sua participação ativa na sociedade.
A pandemia acionou os sinais de alerta para a saúde mental e deu-lhe uma visibilidade nunca antes vista. O cansaço pandémico, ampliado pelos confinamentos, a preocupação e o medo de uma doença desconhecida, o isolamento, e o esforço visível no rosto dos profissionais de saúde que aguentaram trabalhar, meses a fio, na linha da frente na luta contra a Covid-19, trouxeram o tema para a opinião pública. O desafio da saúde mental em Portugal é, agora, "aproveitar a onda e não deixar que o tema volte a ser menos visível, e garantir que as pessoas estejam conscientes e despertas para o problema", afirma António Leuschner.
O psiquiatra e presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental participou em mais um podcast "Transformar o SNS", promovido pelo DN, onde recordou o direito de todos os cidadãos a usufruir de bem-estar mental, acompanhando o bem-estar físico e o bem-estar social. "Estas três componentes são absolutamente indissociáveis", refere, lembrando que este é um problema que surge muitas vezes associado a doenças físicas graves, em que os doentes sofrem psicologicamente com isso e que, por isso, é essencial garantir que têm o acompanhamento e o apoio necessários.
Este é um problema que afeta, não só, os doentes, mas também as famílias. "Não podemos esquecer que por detrás de uma pessoa há sempre um agregado familiar", aponta Joaquina Castelão, que participou igualmente no podcast sobre saúde mental e que, em conjunto com António Leuschner, desenvolveu a tese que reflete e aponta caminhos sobre o tema, no âmbito do projeto "Transformar o SNS".SUBSCREVER
A presidente da Familiarmente (Federação Portuguesa de Associações de Famílias com Pessoas com Experiências de Doença Mental), que conhece de perto o problema e trabalha junto de outras famílias e das associações que lhes dão voz, alerta para a importância da promoção da saúde e da prevenção, não apenas com a saúde mental, "mas acima de tudo no diagnóstico atempado, no tratamento adequado e de um acompanhamento integrado em termos multidisciplinares, que inclua como recurso - e não apenas como parceiro -, a família". Porque esta, acrescenta Joaquina Castelão, também precisa de ser cuidada, não com a mesma tipologia de doença, mas precisa de apoio e de acompanhamento. "Esta é uma percentagem muito elevada da nossa população e requer uma atenção muito grande por parte dos principais responsáveis pelas políticas de saúde mental, pelos dirigentes dos serviços e da sociedade em si".
O estigma sobre estas doenças - que ainda perdura em pleno século XXI - tem também, na opinião da presidente da Familiarmente, que ser eliminado. Na sua perspetiva, a sociedade continua a ser a principal responsável pelo estigma que se mantém, provavelmente por falta de informação sobre o assunto, "mas o que é certo é que ainda há muito a fazer nessa área".
António Leuschner concorda e acrescenta que a saúde mental pode, e deve, ser trabalhada da mesma forma que a restante saúde, ou seja, muito antes de aparecer a doença. E estas ações, defende, devem começar muito cedo na vida das pessoas. A recente constituição de um grupo que fará um estudo sobre a importância da saúde mental no aumento da criminalidade nos jovens abaixo dos 16 anos é, para o psiquiatra, um passo muito importante.
"Tendo a noção de que é verdade que muitas das determinantes das descompensações não estão propriamente na entidade biológica por de trás de cada um de nós, mas também estarão em fatores ambientais, sociais, económicos ou familiares, é um trabalho fundamental", reforça.
Relativamente aos custos, uma componente sempre importante em qualquer temática da saúde, Joaquina Castelão acredita que serão idênticos, ou até menores, que em muitas outras áreas da saúde. "Há custos, numa fase inicial, que se transformam em dividendos muito superiores aos custos do que se investe na saúde, devido a toda a repercussão que tem uma pessoa estabilizada poder levar a sua vida com normalidade".
Muitas vezes, estas pessoas deixam os empregos ou os estudos, interrompendo o ciclo de vida normal devido à incapacidade que a doença traz, enquanto progride sem tratamento adequado. O mesmo acontece nas famílias, que frequentemente deixam de trabalhar para fazer um acompanhamento, reduzindo o rendimento do agregado, com todas as implicações económicas e sociais que a situação acarreta. "Temos de ponderar todos estes fatores, e não pensar apenas no custo que pode ter para o Estado. Neste momento, o maior custo está sobre a pessoa que sofre, sobre a sua família e sobre a sociedade, porque é uma pessoa que deixa de produzir para o país".
Para acompanhar o debate completo, veja o vídeo em cima ou oiça o podcast: