Em parceria com o Diário de Notícias a FSNS divulga o Projeto Transformar o SNS - 10 Teses para a mudança

Tese III – Centralidade do cidadão: acesso, integração de cuidados e participação com Pedro Lopes Ferreira e Mirieme Ferreira.

Centralidade do cidadão: acesso, integração de cuidados e participação

Falar da centralidade do cidadão no SNS é falar das políticas que promovem a inclusão, a solidariedade, a participação, a igualdade de oportunidades e a equidade no acesso, mas também o desenvolvimento socioeconómico, os direitos sociais, as condições de vida e os direitos à habitação, à educação e à saúde. Implicados estão, forçosamente: a promoção da saúde; a literacia e capacitação em saúde; a prevenção; os estilos de vida saudáveis e a confiança do cidadão no SNS.

A centralidade do cidadão é um dos pontos críticos da prestação de cuidados de saúde e pressupõe a satisfação das necessidades e a qualidade de vida das pessoas. Não há centralidade sem acesso a recursos fundamentais para a vida, se não forem transformados, pela positiva, os determinantes sociais da saúde.

Dito isto, este artigo focaliza-se em três pontos essenciais.

1 - Acesso aos cuidados de saúde

Uma das primeiras facetas da centralidade do cidadão é o acesso aos cuidados de saúde, aliás previsto pela lei 41/2007, de 24 de agosto, que inclui a Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde dos Utentes do SNS. Todos devem ter acesso aos serviços de saúde de qualidade de que precisam, quando e onde precisam. É necessário um sistema que acompanhe o impacto dos determinantes sociais da saúde no acesso aos cuidados de saúde, indicador importante para avaliar o êxito das políticas de saúde.

2- Facilidade de utilização dos cuidados de saúde

Os sistemas de saúde são complexos e muitas vezes confusos. O cidadão comum pode ter dificuldade em navegar no sistema. Assim, a simplificação de percursos e a capacitação do cidadão para utilizar adequadamente os serviços devem ser também objetivos a atingir. Para isso, contribuiria substancialmente transformar o SNS, tornando-o mais integrado e menos fragmentado, e mais orientado para obter ganhos em saúde. Os cuidados deverão ser prestados por equipas que integrem o cidadão nas tomadas de decisão e que sejam suportadas por sistemas de informação desenhados, não com base nas instituições ou nas doenças, mas centrados no cidadão utilizador. É necessário impulsionar os sistemas locais de saúde previstos na Lei de Bases da Saúde, assim como redefinir as funções dos gabinetes do cidadão, para que promovam o envolvimento, participação e controlo por parte dos cidadãos relativamente à sua saúde e aos serviços do SNS.


3 - Capacitação, literacia, informação e participação

A capacitação do cidadão implica promover a literacia em saúde. Com maior literacia, os cidadãos conseguem navegar melhor no sistema, avaliar melhor os cuidados prestados e fazer uma melhor gestão da sua saúde e do seu plano de cuidados. Há, assim, que promover e reforçar estratégias e meios de apoio à literacia, à capacitação e ao empoderamento dos cidadãos. É essencial avaliar sistematicamente a literacia dos cidadãos utilizadores das unidades do SNS, o que contribuirá também para reduzir as desigualdades em saúde.

Por outro lado, para uma melhor literacia, é crucial o acesso à informação em saúde de modo a motivar os cidadãos a adquirirem competências necessárias para fazerem escolhas informadas e participarem ativamente nessas decisões. Esta informação pode ser disseminada pelas instituições do SNS ou pelos próprios profissionais no contacto com os cidadãos. A comunicação deve ser de tal modo que cada cidadão entenda perfeitamente o que lhe está a ser informado. Deve evitar-se linguagem técnica e adequar sempre as mensagens às características pessoais, de escolaridade e culturais dos doentes, seus cuidadores e familiares, para que a prestação de cuidados possa ser considerada centrada no cidadão.

Esta centralidade requer ainda a avaliação por parte do cidadão dos cuidados que lhe são prestados. Até porque a satisfação dos utilizadores tem um impacto substancial na adesão terapêutica e, obviamente, no estado de saúde das pessoas e no recuperar de doenças. É cada vez maior a necessidade de ter em conta as preferências dos doentes para conseguir maior efetividade na prestação de cuidados. É também fundamental a monitorização sistemática da opinião dos utilizadores do SNS sobre a qualidade dos cuidados recebidos e do desempenho dos serviços de saúde, relativamente a aspetos concretos das suas experiências.

Sendo a participação também empoderamento, é fundamental que o cidadão participe na comunidade nas áreas relacionadas com a saúde. Os municípios têm aqui um papel determinante. Devem desenvolver um modelo de governação local para a saúde que inclua a centralidade do cidadão, não só no acesso à saúde, mas também a um conjunto de determinantes que a influenciam. E esse modelo de governação tem de identificar aspirações, satisfazer necessidades, promover a participação e o envolvimento das pessoas na prevenção de doenças e na promoção da saúde. Há que assegurar respostas intersetoriais para e com as comunidades vulneráveis. Todos os Planos Locais de Saúde devem visar objetivos, estratégias e ações concretas promotoras de maior equidade. Há que desenvolver dinamizadores/promotores de saúde pública por bairros ou freguesias, identificando localmente casos complexos de isolamento e de necessidades básicas por satisfizer, constituindo-se como alertas sociais e elementos facilitadores, em colaboração com os serviços de saúde, sociais e autarquias. Por fim, propõe-se a criação de Fóruns de Participação para a Saúde Comunitária, enquanto espaços de diálogo e de concertação estratégica, de monitorização de indicadores e de estruturação de respostas para carências identificadas, influenciando a agenda da saúde, através de recomendações e propostas concretas.


Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Coordenadora do Gabinete Seixal Saudável da Câmara Municipal do Seixal


O Serviço Nacional de Saúde não pode ter uma resposta igual para todos

O SNS Sistema deverá ser capaz de adequar a prestação de cuidados às necessidades de cada pessoa. Centralidade no cidadão pressupõe igualdade de acesso, mas também de conhecimento e de capacidade de decisão.

A confiança do cidadão no Serviço Nacional de Saúde é essencial para o bom funcionamento do sistema. No entanto, é preciso conquistá-la colocando as pessoas no centro da prestação de cuidados de saúde. Para tal, dizem os especialistas, é preciso apostar em políticas que promovam inclusão, solidariedade, participação, e igualdade de oportunidades. "O cidadão terá melhor acesso aos cuidados de saúde, quanto mais estiver informado, quanto mais literacia tiver, quanto mais as suas necessidades básicas estiverem satisfeitas", diz Mirieme Ferreira, mestre em saúde pública e responsável do projeto Seixal Saudável na Câmara Municipal do Seixal. Na opinião da coautora da tese "Centralidade do Cidadão", desenvolvida no âmbito do projeto Transformar o SNS, a que o Diário de Notícias se associou, se uma pessoa não tiver, em termos de condições socioeconómicas, uma vida estável, "estará de alguma forma excluída do acesso de um conjunto de dimensões, entre as quais os cuidados de saúde".

Um problema para o qual uma das soluções passa, na perspetiva de Pedro Lopes Ferreira, coautor desta tese, por garantir que o SNS responde adequadamente a cada uma das pessoas que têm características distintas. "Não pode ser uma resposta igual para todos, porque as necessidades das pessoas são diferentes", reforça o professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e diretor do Centro de Estudos e Investigação em Saúde da mesma instituição de ensino. "Falamos muitas vezes no acesso às consultas, às cirurgias e aos tempos de espera, tudo isso é acesso. Mas também é acesso, por exemplo, a capacidade de navegar no sistema". A verdade é que, diz o professor, as pessoas perdem-se no sistema e não sabem onde devem ir.

Silos pouco comunicantes

Este desconhecimento é, muitas vezes, fruto da falta de informação, mas, aponta Pedro Lopes Ferreira, também da forma como o sistema e as instituições estão organizadas. "Concretamente no SNS, temos as nossas instituições organizadas em silos perfeitamente estanques, e que não comunicam entre si".SUBSCREVER

Ainda assim, ambos reconhecem que a literacia é fundamental. "Temos de estar cada vez mais preocupados com a capacidade que as pessoas têm para entender as mensagens apresentadas pelo SNS, de uma forma sistemática", defende Pedro Lopes Ferreira. No entanto, reconhece também que os profissionais de saúde devem falar de forma mais clara, mais entendível e sem jargões médicos e garantir sempre que a pessoa compreendeu a mensagem transmitida. "Há um trabalho grande a fazer ainda, que tem de ser coletivo e sem barreiras".

Neste trabalho que se pretende de parceria e em rede, os municípios são uma peça essencial. Com experiência de campo na cidade do Seixal, Mirieme Ferreira destaca a importância da articulação entre os municípios e os cuidados de saúde primários e hospitalares. No Seixal, exemplifica, "trabalhamos há muitos anos em conjunto, sobretudo nas questões de promoção da saúde e estilos de vida saudável, área em que acrescentamos valor ao SNS". É nesta boa relação, sentido de responsabilidade coletiva e de trabalho em parceria que que se constrói a promoção da saúde, defende ainda a especialista em saúde pública.

Esta organização num ecossistema que inclui SNS e outros stakeholders públicos e privados já estava prevista na última Lei de Bases da Saúde, recorda Pedro Lopes Ferreira. "Os sistemas locais de saúde são extremamente importantes porque são a forma de o SNS dialogar com outras entidades na área da saúde, mas também da educação, habitação ou segurança social", afirma, acrescentando que está previsto nesta lei, mas também no novo estatuto do SNS - que ajuda a arrumar as várias peças do SNS -, a relação com os privados que "é muito importante que fique clara, transparente e que não haja qualquer situação ambígua". Resta esperar para ver o que a aplicação prática da lei nos reserva. "Há uma luz esverdeada que está a começar a aparecer no horizonte, esperemos que seja concretizada de forma a podermos ter uma melhor resposta de todo o sistema, e do SNS em particular, às diferentes necessidades das pessoas", conclui o professor.

Para ver ou ouvir o debate na integra, veja o vídeo em cima ou ouça o podcast: