Em parceria com o Diário de Notícias a FSNS divulga o Projeto Transformar o SNS - 10 Teses para a mudança

Tese V – Mudanças Adaptativas de Proximidade com André Biscaia e Eunice Carrapiço.

Um SNS próximo, participativo, que assegure o que cada um necessita

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) nasceu com a democracia e tem sido um dos seus instrumentos fundamentais, combatendo desigualdades e garantindo coesão social.

"Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover" é a frase fundadora inscrita na Constituição e que elege a Saúde como um direito que se concretiza com o empenho de todos para que seja universal e de qualidade, ou seja, consiga satisfazer as necessidades singulares de cada um e os objetivos de Saúde de toda a população. O SNS tem conseguido grandes sucessos, como é evidenciado nos relatórios da OCDE. Uma esperança de vida acima do esperado pelas condições económico-sociais do país, uma mortalidade evitável e tratável melhor do que a média europeia e internamentos evitáveis dos melhores da OCDE para várias das doenças importantes. Estes indicadores traduzem, em grande medida, a efetividade dos cuidados de saúde primários (CSP). No entanto, o SNS tem-se tornado, também ele próprio, desigual. Tem problemas de acesso, atrasos relevantes e falhas em várias áreas, sobretudo por não dispor do número necessário de profissionais em quantidade e qualificação. No caso dos médicos, a base do problema remonta à década de 1980 com um corte prolongado e profundo na formação de novos médicos, que está a repercutir-se atualmente em várias áreas assistenciais e na capacidade de formação pós-graduada dos médicos mais jovens. Nas outras áreas, as insuficiências devem-se, e muito em especial nos CSP, à falta de contratação para o SNS e às condições de trabalho e de carreira, no geral, pouco atrativas deste.

O SNS apostou desde o início nos cuidados de saúde primários com uma rede de centros de saúde que cobrem todo o país, próximos das pessoas e das comunidades. No entanto, na prática, esta aposta nunca teve a prioridade anunciada no discurso político.

O SNS apostou desde o início nos CSP com uma rede de centros de saúde que cobrem todo o país, próximos das pessoas e das comunidades. No entanto, na prática, esta aposta nunca teve a prioridade anunciada no discurso político. Por exemplo, o Relatório da Primavera de 2018 do Observatório Português de Sistemas de Saúde de 2018 concluía que o processo de reforma dos CSP havia ficado a meio. E assim continua.

Neste momento, de forma a assegurar a transformação harmoniosa da arquitetura dos cuidados de proximidade, é urgente articular pensamento e ação nacional com pensamento e ação locais, partindo do que já existe, e tendo em conta as aprendizagens feitas. Assim, parece importante investir em áreas prioritárias, como:

Disponibilizar, para toda a população, equipas de saúde familiar acessíveis e a trabalhar em condições otimizadas, designadamente com médico e enfermeiro de família, e um secretário clínico de referência, que assegurem proximidade, continuidade e integração de cuidados. Para isso, é necessário que todos os cidadãos, que assim o desejem, disponham de uma equipa profissional próxima dedicada. Estas equipas multiprofissionais abrangem já a grande maioria da população, em especial através das unidades de saúde familiar (USF), mas é importante que, com a maior brevidade, abranjam todo o país e tenham boa acessibilidade e disponibilidade e melhores condições de trabalho.
São também necessários ajustes e transformações organizacionais que melhorem a abertura e a flexibilidade adaptativa destas equipas para um trabalho integrado com outras profissões da saúde (que devem existir em número adequado nos centros de saúde), com outros serviços de saúde (hospitais, unidades de cuidados continuados integrados e outros) e com as instituições e parceiros da comunidade (comissões de utentes, associações de pessoas que vivem com doença, segurança social, escolas, autarquias, farmácias, IPSS e setor social, setor convencionado, forças de segurança e de proteção da população, entre outros). Este parece ser também o caminho mais pragmático para edificar os sistemas locais de saúde previstos na Lei de Bases da Saúde, evitando construções normativas que podem não passar do papel.

Aumentar a capacidade dos CSP para resolverem a grande maioria dos problemas de saúde da população, com prontidão para responder à doença aguda no próprio dia, vigilância e promoção da saúde em todas as idades, prevenção organizada de doenças específicas, acompanhamento e controlo de doenças crónicas, cuidados no domicílio e intervenções na comunidade. Para isso, haverá que melhorar a organização e os recursos das equipas, diversificar as competências profissionais disponíveis a nível local e assegurar meios e equipamentos adequados aos CSP.

Criar condições atrativas para vincular os profissionais de saúde ao SNS, prevendo três dimensões: modelos e níveis retributivos; desenvolvimento profissional em carreiras dinâmicas e motivadoras; condições de trabalho organizacionais e materiais.

Implementar estruturas funcionantes de participação da população, para que as pessoas que procuram cuidados sejam uma força ativa e efetiva na melhoria contínua dos serviços de saúde, começando por reanimar os previstos Conselhos da Comunidade.

Investir em melhor governança dos CSP - através da seleção adequada, da formação específica, e do apoio e desenvolvimento das equipas dos vários níveis de decisão.

Instituir um Processo Clínico Eletrónico Único, que permita disponibilizar informação de saúde relevante sempre que o cidadão tenha necessidade de aceder a um serviço de saúde. Este processo "eixo-central" organiza de forma estruturada, padronizada e integrada a avaliação clínica e de saúde de cada pessoa e inclui o plano individual de cuidados em curso - permanentemente atualizados pelo próprio, com o apoio da sua equipa de saúde familiar.

Os CSP são cuidados essenciais e, como tal, devem estar disponíveis para todos, com prontidão e qualidade, sem qualquer tipo de constrangimento. No entanto, só o vamos conseguir com a participação de todos.

André Biscaia é presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar.
Eunice Carrapiço é a Diretora Executiva do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Lisboa Norte.


Dar um médico de família a todos os portugueses não é suficiente

Para que os cuidados de saúde cheguem, de forma igualitária, a todas as pessoas é preciso garantir condições socioeconómicas dignas, equipas de saúde familiar a trabalhar em condições otimizadas e organizadas num agrupamento de centros de saúde com as restantes profissões de saúde. Um trabalho multidisciplinar e integrado que exige planeamento de longo prazo.

No que diz respeito à saúde e ao bem-estar de cada pessoa, apenas 20% é alcançável com os cuidados de saúde. Os restantes 80% incluem as condições de vida, de trabalho e socioeconómicas. "Isto implica um esforço global de toda a sociedade e de várias gerações", afirma André Biscaia. No entanto, o médico de família na USF Marginal e presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar acredita que "este não é um problema deste Governo, do anterior ou dos últimos cinco, é um problema que exige um planeamento que já deveria ter acontecido e já estar ativo há muitos anos".

Mas, sendo uma questão de planeamento e de organização, significa que, afinal, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem recursos suficientes? Podia ter, mas não tem. "Até existem os recursos necessários e até se conseguiu, em termos dos médicos de família, formar mais médicos para este efeito", revela André Biscaia. Anualmente são formados entre 400 e 500 médicos de família, o que seria um bom número se todos ficassem dentro do SNS. Para o co-autor da tese "Mudanças adaptativas de proximidade", que desenvolveu em parceria com Eunice Carrapiço, especialista em Medicina Geral e Familiar e diretora executiva do Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Norte, no âmbito do projeto "Transformar o SNS", a que o Diário de Notícias se associou, "a questão é que não se dá as condições de atração e retenção para que eles escolham o SNS. Essas são as soluções necessárias e, neste momento, há 1700 médicos no privado que poderiam optar pelo SNS se lhes dessem essas condições".

Eunice Carrapiço recorda, contudo, que esta carência de médicos, e de médicos de família em particular, não é um problema de agora. "Foi criado na década de 80 quando houve uma redução significativa dos números de entradas para as faculdades isso repercute-se agora nos médicos entre os 40 e os 60 anos na especialidade de medicina geral e familiar, assim como noutras especialidades". Durante os próximos cinco a sete anos, devido às reformas, o problema tenderá a agravar-se ainda mais, alerta a especialista que defende, para os cuidados de saúde primários, o alargamento do modelo retributivo com base no desempenho. "É algo que já existe e tem retido vários profissionais no SNS. Mas é preciso fazer mais, e alargar esta forma de pagamento diferenciado". Eunice Carrapiço dá o exemplo do concurso para médicos de família da região de Lisboa - a mais carenciada do país. Quem escolher estas vagas tem um suplemento remuneratório de 700 euros como forma de atrair e de vincular. "Mão será suficiente, pois é uma medida pontual", reforça.

No entanto, para a responsável do Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Norte, ter um médico de família para todos os portugueses não chega e não resolve todos os problemas. "Mais do que o médico de família precisamos de equipas profissionais, próximas, dedicadas com médico, enfermeiro de família, secretário clínico e com um conjunto integrado de outras profissões", explica.

O objetivo é que qualquer utente possa ligar e conseguir consulta no próprio dia para uma doença aguda, conseguir em poucos dias uma consulta de vigilância, ou conseguir ligar para a sua unidade de saúde e ser atendido. "Estas equipas, além de serem acessíveis e disponíveis, têm de trabalhar integradas com todas as profissões e também com os hospitais, com a rede de cuidados continuados integrados, com os parceiros da comunidade, com as IPSS e com a Segurança Social", acrescenta Eunice Carrapiço que reconhece também que, além da falta de profissionais no SNS, o outro ponto mais frágil é a ligação entre tudo isto. "Esta falta de ligação entre todos estes serviços e unidades, que colaboram para um mesmo objetivo - a prestação de cuidados de saúde -, necessita de ser desenvolvida para que as pessoas se sintam verdadeiramente acompanhadas".

Para seguir o debate na íntegra veja o vídeo em cima ou ouça o podcast: