Em parceria com o Diário de Notícias a FSNS divulga o Projeto Transformar o SNS - 10 Teses para a mudança
Tese VIII – Investir em saúde com Ana Escoval e Julian Perelman
Investir em saúde
O financiamento, o investimento e o modelo de governação da saúde estão estreitamente interligados e requerem políticas orçamentais transparentes e adequadas. Políticas que promovam a confiança entre decisores, prestadores de cuidados e cidadãos. Para isso, são essenciais a autonomia e a responsabilização, tanto do governo como dos órgãos de administração e gestão institucional.
O modelo de financiamento, enquanto alocação de recursos, pode ser um poderoso fator para modular o sistema de saúde e induzir nele mudanças significativas, sugerindo-se três reflexões:
O financiamento e o investimento na saúde devem ser vistos como investimento no desenvolvimento económico-social e bem-estar das comunidades. Para isso é necessária uma nova lógica orçamental direcionada para o bem-estar;
O modelo de financiamento deve focalizar-se e orientar-se para resultados de saúde e bem-estar, promover a integração de cuidados e, ao mesmo tempo, prevenir a indução e a multiplicação de cuidados desnecessários, redundantes ou inadequados;
Considera-se indispensável uma estratégia de complementaridade regulada com todos os atores públicos ou privados cuja ação influencia a saúde, como o ensino, o setor social, o ambiente ou os transportes, numa visão sistémica integrada e horizontal, para dar resposas adequadas às necessidades de saúde da população.
Onde estamos e para onde vamos?
A imprevisibilidade da atual conjuntura mundial impõe às economias e aos sistemas de saúde uma necessidade de mudança adaptativa.
Dimensões que contribuem para estas mudanças são, entre outras: a interligação de serviços, o financiamento e a governação; os cuidados centrados no doente e a sua capacitação; a tecnologia médica e de informação; o envelhecimento demográfico, o fenómeno das migrações; e as emergências de saúde pública (relacionadas em particular com pandemias, convulsões económicas e sociais, e alterações climáticas).
A mudança do modelo de financiamento foi iniciada em alguns países, com efeitos na definição das políticas de saúde, uma vez que a saúde é uma componente crucial do bem-estar. Consequentemente, esta alteração das políticas, de métricas económicas tradicionais para o bem-estar subjetivamente percebido, deverá traduzir-se numa alteração na forma como os recursos são alocados para melhorar a saúde das populações, focando os sistemas de saúde e todos os atores que influenciam a saúde.
Como outros pensam o futuro
Vários autores destacam a importância da equidade em saúde para melhorar o bem-estar geral da sociedade. A equidade é um valor central, tanto no acesso como na utilização e nos resultados dos cuidados de saúde. A equidade no bem-estar e na saúde são marcas distintivas dos sistemas que proporcionam melhores resultados para os cidadãos e, uma melhor relação custo-benefício. Assim, importa refletir sobre o que será necessário para criar economias que deem resposta a estes desígnios, bem como sobre métricas que reflitam o que é, em última análise, a criação de valor em saúde. Esta questão implica repensar o conceito de valor em saúde, remodelando e reorientando a economia com base em novas métricas de saúde.
Países como a Nova Zelândia e o Reino Unido são alguns dos que já começaram a implementar programas orçamentais focados no bem-estar, centrado nas pessoas, no emprego, na educação, na saúde e no ambiente, procurando balancear as necessidades das presentes gerações com os desafios a longo prazo.
Como podemos progredir?
Com base neste novo paradigma, e de acordo com tendências atuais a nível internacional, começam a emergir algumas abordagens em Portugal, no sentido de dotar a população de ferramentas que lhes proporcionem maior bem-estar.
As insuficiências há muito sentidas no SNS, que a pandemia trouxe a palco, evidenciam a necessidade premente de mudar o paradigma da gestão da saúde em Portugal, com medidas transversais orientadas para melhorar os determinantes sociais da saúde, e um adequado planeamento e gestão eficiente do SNS, que gastou, em 2021, mais de 12.500 milhões de euros. Esta despesa é apresentada ou em função das entidades entre as quais foi distribuída (p. ex., 7.000 milhões de euros aos hospitais EPE), ou em função das tipologias de despesa (p. ex., 5.000 milhões de euros para recursos humanos). Mas não é explicado com clareza qual foi o propósito desta despesa que todos nós, enquanto cidadãos, contribuímos para financiar e quais os objetivos atingidos.
As mudanças necessárias deverão ser acompanhadas e avaliadas, com particular atenção à associação explicita das dotações orçamentais a prioridades estratégicas de saúde e bem-estar, numa perspetiva sistémica e integrada, saindo da lógica de financiamento em "silos", para instituições ou setores específicos. Assim, o financiamento dedicado ao bem-estar das populações, deverá ser partilhado, inicialmente entre os ministérios da Saúde e da Segurança Social, e posteriormente alargado aos setores da educação e ambiente, entre outros.
O Plano de Investimentos deverá estar explicitamente alinhado com as prioridades de saúde e bem-estar presentes e futuras, tendo como foco primordial as infraestruturas, os meios e os equipamentos dos cuidados de saúde primários e de proximidade, enquanto pilares centrais e âncoras de todo o sistema de saúde. Um passo essencial será também a efetivação de um Orçamento plurianual, em linha com a Lei de Bases da Saúde (Base 23).
Fica o desejo que, em outubro, no próximo orçamento, pelo menos parte da despesa prevista para 2023 tenha um rótulo de bem-estar, transversal às instituições e tipos de despesas, com metas claras, transparentes e consensuais, que todos possamos acompanhar.
* Com a colaboração de Ana Lívio e Carma Gouveia (Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar - APDH).
Ana Escoval (ENSP/CHRC/CISP) e Julian Perelman (ENSP/UNL)
Cidadãos têm que ser ouvidos sobre o modelo de financiamento da saúde
É uma questão política, estratégica, de administração, dos dirigentes locais e das instituições da saúde, mas também é um problema das pessoas que, através dos seus rendimentos e do seu trabalho financiam, diretamente ou indiretamente, os cuidados de saúde. E, por isso, população deve ter uma palavra a dizer.
e as pessoas são os grandes financiadores de saúde, importa tê-los na equação".
As palavras são de Ana Escoval, membro da direção da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar (APDH) e do Conselho-Geral da Fundação SNS. Para a coautora da tese Investir em Saúde, integrada no projeto Transformar o SNS, a que o Diário de Notícias se associou, "importa que as pessoas sejam peças ativas, não só naquilo que são os modelos de financiamentos que potenciam os resultados que se pretendem, como na transparência".
Na realidade, defende Ana Escoval, financiamento, investimento e modelo de governação da saúde estão estreitamente interligados e exigem políticas orçamentais transparentes e adequadas. No entanto, e apesar do financiamento poder ser modelador de melhores práticas, um modelo de governação orientado para o utente não pode esquecer outras questões fundamentais como a equidade no acesso à prestação de cuidados, ou os resultados finais da saúde das pessoas. "São necessárias políticas que promovam a confiança entre decisores, prestadores e cidadãos", reforça Julian Perelman, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Nova e coautor desta tese. Contudo, defendem ambos os especialistas, para que esta confiança exista é essencial a autonomia e a responsabilização, quer do Governo, quer dos órgãos de administração e gestão institucional.
Um modelo vocacionado para o bem-estar
Atualmente, em Portugal e em muitos outros países da Europa e do mundo, o indicador de sucesso das políticas públicas é o PIB, ou seja, a criação de riqueza. No entanto, como exemplifica Julian Perelman, a riqueza não é obrigatoriamente sinónimo de bem-estar. "Posso ter um bom salário, mas se estou doente ou não tenho tempo para passar com os meus filhos, para que serve essa criação de riqueza?".
Entre as propostas e as linhas de ação que apontam na sua tese, o professor e a responsável da APDH, defendem a ideia - inspirada em modelos como, por exemplo, o da Nova Zelândia -, de passar desta lógica de criação de riqueza para uma lógica de bem-estar. "O PIB não olha para as desigualdades. Criamos riqueza, mas essa riqueza é para quem? Como é que está distribuída?", questiona Julian Perelman que explica que a proposta passa pela criação de ter um indicador de bem-estar, que é algo que depende de todos. "Devemos fazer um orçamento cujo dinheiro sirva para cumprir uma meta relacionada com o bem-estar".
Na Nova Zelândia, por exemplo, existem metas claras de bem-estar como a meta da saúde mental da população, ou a redução da pobreza infantil. São objetivos que envolvem todos os atores e que quebram a lógica de financiamento e de organização em silos como a que existe em Portugal. Esta solução permite ainda aumentar a transparência, pois os cidadãos podem verificar se as metas estão a ser cumpridas.
Ana Escoval aponta, contudo, a dificuldade em concretizar medidas como esta e o tempo que demora. "É mais fácil fazer uma distribuição de orçamento por silos, como fazemos agora, mas isto não pode ser assim". O objetivo da saúde, recorda, é garantir que a população é o mais saudável possível e, por isso, não devemos falar de despesa em saúde, mas sim de investimento. "Só uma população saudável é produtiva, assim como só com esta rede complexa conseguimos chegar aos melhores resultados. Isto tem de começar em pequenino, temos de criar condições e potenciar condições para as famílias".
O objetivo desta tese é também, como confessam os autores, ser um pouco provocatório, "garantindo que as pessoas se mobilizam neste desígnio fundamental de acompanhar, de pedir contas, de ser capaz de exigir ter de forma transparente uma distribuição equilibrada de recursos em prol da sua vida", defende Ana Escoval. Mas, acrescenta Julian Perelman, "é um caminho a ser percorrido em que, antes de fixarmos prioridades, temos de pensar em questões mais técnicas de como se pensa e faz o orçamento. Temos de pensar como passamos da teoria à prática".
Para conhecer mais a fundo as propostas apresentadas nesta tese Investir em Saúde, assista ao podcast disponível no site do Diário de Notícias.
Veja o vídeo do debate em cima ou ouça o podcast: