A Fundação para a Saúde - Serviço Nacional de Saúde, contribui para a discussão pública sobre o Novo Estatuto do SNS.
Partilhamos os contributos, que serão desenvolvidos com outras iniciativas, durante as próximas semanas. Poderá ler aqui:
NOVO ESTATUTO DO SNS – fase de discussão pública Contributo da FSNS
Apreciação geral
A proposta de decreto-lei sobre o novo Estatuto do SNS, que está em discussão pública, ainda que contenha alguns aspetos pontualmente inovadores, falha o seu propósito mais central, que é o de promover coerência e coesão no SNS como um todo, e criar ou perspetivar mecanismos facilitadores de uma cultura identitária comum a todas as organizações e serviços do SNS. Não reflete qualquer estratégia de mudança capaz de “reacender a esperança no futuro do Serviço Nacional de Saúde”, tão necessária e urgente. Fica muito aquém, e em alguns pontos contraria, as expectativas criadas pela Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 95/2019).
Predomina no texto uma visão administrativista e redutora de um SNS produtor de serviços, a par de outros “produtores de serviços”. Omite ou subvaloriza as dimensões educacional, de ensino e formação (o SNS foi e ainda é a maior, a melhor e a mais completa escola profissional de saúde) e a investigação. Paralelamente, assume uma abordagem demasiado pobre quanto ao seu núcleo mais essencial: os seus profissionais e sobre como promove e assegura a sua valorização e desenvolvimento profissional contínuo – isto é, as suas carreiras profissionais. A este respeito mantém as abordagens avulsas do tipo: contratos individuais, vínculos precários, situações excecionais, horários prolongados, recurso sistemático a trabalho extraordinário – que, em parte, têm determinado a hemorragia contínua de profissionais para fora do SNS.
Apreciação de alguns aspetos pontuais
1 - Ao falhar o seu propósito mais central, como atrás referido, ao não corresponder a qualquer estratégia explícita de mudança, e ao não se alicerçar na componente que dá vida, alma e movimento ao SNS, que são os seus profissionais, esta proposta de estatuto compromete, naturalmente, as suas partes e aspetos pontuais, alguns que poderiam considerar-se inovadores noutro enquadramento estatutário.
Ainda assim, referem-se:
- Direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (º 9.º) - tendo presente o que vem referido no texto introdutório em que se realça esta “inovação” e analisando as suas competências expressas nas diferentes alíneas do art.º 9.º, conclui-se que o seu principal foco é a vertente assistencial das unidades de saúde. Com as adaptações necessárias, parece-nos que os órgãos de administração regionais (ARSs) e o órgão de administração central (ACSS) podem cumprir o essencial da missão atribuída a esta nova direção.
Há, de facto, a necessidade de instituir dispositivos, não com estas funções, mas de “análise e de direção estratégicas para garantir coesão, integração, coerência e direção adequadas para transformar o complexo, fragmentado e desligado edifício que é, actualmente, o SNS”;
b) Regime de dedicação plena (art.º 16.º) - sendo uma medida que pode trazer vantagens pontuais, perde importância e impacto por não se enquadrar num conjunto de outras que, num todo coerente, configure uma nova “política para as profissões de saúde”;
c) Sistemas locais de saúde (art.º 13.º) - a sua criação, prevista na Lei de Bases da Saúde, faz todo o sentido pelo seu papel integrador dos múltiplos atores locais, direta ou indiretamente ligados à saúde. Sem personalidade jurídica e com grande dependência das ARS, há o risco de se transformarem em delegados burocráticos destas, sem espaço de manobra, designadamente para apoiar e fomentar iniciativas locais inovadoras intersectoriais e participadas;
d) Proximidade, integração de cuidados e articulação inter-regional (art.º 8.º) - a integração de cuidados é uma das fragilidades mais críticas do SNS, e do sistema de saúde em geral. Face aos atuais desafios, nomeadamente: alterações demográficas, envelhecimento e multimorbilidade, aquilo que é necessário é promover a integração e a continuidade de cuidados pela gestão dos percursos das pessoas através das organizações de saúde - possibilidade das pessoas que recorrem aos cuidados de saúde serem capazes de percorrer os vários serviços de que necessitam, em tempo útil, com bons resultados no final de cada percurso. É conhecida a existência de fatores que dificultam progressos significativos na integração de cuidados, sendo particularmente importantes na compreensão dos obstáculos e das oportunidades transformativas do sistema de saúde português. No entanto, as barreiras podem ser superadas através de um conjunto de aspectos facilitadores, ao nível organizacional, técnico e político. A integração de cuidados será facilitada se existirem instrumentos de informação, uma estrutura regulatória e financiamento que promova a integração e a continuidade de cuidados – com abordagens inovadoras e indicadores nacionais de resultado que incentivem a prossecução destes desideratos. A iniciativa SNS + Proximidade é um exemplo a que se deve atender. No entanto, na presente proposta de Estatuto não há qualquer indicação concreta para operacionalizar a da integração e a continuidade de cuidados, designadamente a criação do processo clínico electrónico unificado;
e) “Atribuição da competência para a autorização de despesa conferida ao director executivo do ACES” (texto introdutório, pág.2) - mas quando se definem as suas competências (art.º 32.º), a alínea b) diz expressamente até 20.000 euros. Se tivermos presente a dimensão do orçamento anual de um ACES, este montante, por ser insignificante, não tem qualquer relevância no alargamento, tão necessário, da autonomia dos ACES. Neste âmbito, o que devia ser destacado era a obrigatoriedade de todos os ACES e as respetivas ARSs se comprometerem com contratos-programa anuais, referidos no art.º 57.º. Recorda-se que estes contratos-programa constam do DL n.º 28/2008 (criação dos ACES), mas nunca celebrados, sem qualquer justificação;
f) Participação das autarquias locais (art.º 26.º) - o referido nas diferentes alíneas configura uma forte interferência das autarquias na gestão dos ACES, desde construção, equipamentos, manutenção até à “gestão dos trabalhadores inseridos na carreira de assistente operacional das unidades funcionais dos ACES”. De realçar, ainda, que nos termos do ponto 7), do art.º 37.º, os municípios podem criar e administrar unidades de cuidados na comunidade (UCC). Isto configura uma inadequada “municipalização dos CSP” com o risco de agravar a fragmentação, a 3 desintegração e a acentuação das iniquidades já existentes no SNS. Sendo as autarquias parte integrante dos SLS (art.º 13.º) é neste enquadramento que devem dar um importante contributo para uma melhor saúde.
g) Conselho de administração dos hospitais (art.º 66.º) - passa a integrar um vogal não executivo representante dos trabalhadores por estes eleito. Por um lado, é um passo positivo por contribuir para uma maior transparência na gestão, mas, por outro, não tem relevância na necessária e urgente alteração da cultura vigente, na administração hospitalar, desfocada dos resultados de saúde e da indispensável governação clínica para os alcançar, e pautada por “normas e ações de comando-e-controlo”. Nas organizações complexas, como são as da Saúde, em que a mudança deve apoiar-se em transformações adaptativas e na inteligência colaborativa, tal não é possível numa cultura de “quero, posso e mando”;
h) Autorizar a participação do estabelecimento de saúde, EPE, em sociedades anónimas que tenham por objectivo a prestação de cuidados de saúde (art.º 64.º, ponto 3, alínea c) – com risco de existir a participação de estruturas que visam o interesse público em estruturas que podem ter como objetivo o lucro, criando conflitos de interesses, com potencial dado para o interesse público e o bem-comum.
2 – Aspetos omissos ou fracamente contemplados - exemplos:
a) Recursos humanos do SNS (art.º 14.º) - não é devidamente acautelada e enquadrada a formação e o desenvolvimento profissional contínuos no âmbito do desenvolvimento profissional;
b) Apoio à inovação - não há uma referência específica a este importante assunto que deveria ter artigos dedicado exclusivamente à inovação;
c) Criação de um Observatório Nacional do SNS - ??
3 – Dado o curto espaço de tempo de discussão pública do documento e partindo do princípio que o novo Estatuto só terá aplicação quando houver um novo governo e um orçamento aprovado para 2022, ou seja em março/abril próximos, seria adequado um alargamento do prazo de discussão pública, o que daria espaço para mais e melhores contributos.
O Conselho de Administração da FSNS 16/11/2021