Desafios de saúde

II – Desafios de Saúde

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Prioridade às intervenções a montante – naquilo que determina e promove a saúde

As políticas públicas devem ter a inteligência e a clarividência de, em saúde, se focarem e dedicarem recursos e investimento prioritariamente a montante, isto é, no que promove e mantém a saúde – autocuidado, determinantes biológicos, sociais, socioeconómicos, culturais e ambientais da saúde. A seguir, a jusante, vêm os processos de a recuperar quando necessário, e não o inverso.

A obtenção dos níveis de saúde mais elevados que for possível, num dado tempo, para todos, é um objetivo capaz de mobilizar toda a sociedade. Porém, requer uma governação que seja capaz de dar prioridade à promoção da saúde - uma inflexão dos modos de ver, de pensar e de agir que implica reconhecer o papel dos intangíveis essenciais de natureza social e cultural: a procura do sentido das coisas; a não acomodação; as relações de confiança; o sentido de pertença. Requer também estratégias diferentes das usadas até aqui e que se pautem por uma perspetiva transdisciplinar, por uma abordagem estruturada com base nos princípios da co-produção e por uma elevada capacidade de inovação.

É sabido que os problemas de saúde são complexos, logo, e porque não existem respostas simples para problemas complexos, requerem uma abordagem transdisciplinar que tenha em conta os múltiplos níveis de causalidade (DiClemente et al., 2019; Khan et al., 2018). Tal requer que dois pressupostos sejam verificados: que a formação dos profissionais de saúde inclua esta perspetiva; que a saúde passe a ser participada por múltiplos outros saberes, incluindo os saberes leigos.

Adicionalmente, e apesar de reconhecermos a importância do comportamento individual em saúde, precisamos considerar e reconhecer cada vez mais a importância do contexto social e das redes sociais sobre o comportamento e os resultados em matéria de saúde, a necessidade de compreender o comportamento dentro dos ambientes sociais e intervir nestes níveis estruturais sociais mais amplos torna-se crítica (DiClemente et al., 2019).

Neste contexto, torna-se evidente a relevância dos princípios da co-produção ou seja, uma intervenção estruturada com base na transparência, diálogo, acesso a relações colaborativas entre cidadãos e profissionais, e uma compreensão do equilíbrio dos benefícios e danos das intervenções de saúde propostas (Turakhia & Combs, 2017; Vennik et al., 2016). Esta é também a via para dar espaço aos saberes leigos e às narrativas individuais e coletivas.

Para tanto, exige-se que as intervenções promotoras de saúde sejam inovadoras. Esta deve, entre outras, compreender três dimensões fundamentais: serem criteriosamente escolhidas pelo seu poder multiplicador; serem estruturadas com base numa abordagem multinível; e utilizarem uma estratégia comunicacional multinível e tecnológica (Chappell et al., 2006; Malikhao, 2020).

Evidentemente, a abordagem assim perspetivada precisará ser inserida num modelo de cuidados inserido na comunidade, construído com base em relações de confiança e tendo como objetivo promover o sentido de pertença. Assim sendo, ainda que obedecendo a princípios comuns, cada comunidade precisará de desenvolver o seu próprio modelo


 Desafios de Saúde – Saúde Mental

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Saúde mental, morbilidade múltipla, dependência e fragilidade – novas respostas

Vivemos uma transição demográfica e epidemiológica (McCracken & Phillips, 2017). Neste contexto, é notório que se vivem mais anos, mas esses anos adicionais não estão a ser vividos com a saúde e o bem-estar desejados. Isto é um novo e extraordinário desafio para o sistema de saúde e para o SNS.

O índice de envelhecimento no nosso país cresce como consequência, essencialmente, da redução constante dos nascimentos e do aumento da esperança de vida dos cidadãos. No entanto, se analisarmos o indicador que representa os anos de vida saudáveis, notamos que Portugal regista défices importantes. Exemplificando, em 2019 e segundo a OCDE, em Portugal as mulheres com 65 anos tinham uma esperança de vida de mais 23,3 anos, 69% desse tempo passado com limitações de atividades, um valor relativamente superior ao de outros países comparáveis.

Por outro lado, as respostas que se estão a dar em Portugal a este fenómeno não têm sido suficientes. Segundo a mesma fonte, apenas 1,9% dos adultos com 65 ou mais anos de idade recebem cuidados continuados.

Quando analisamos as características das doenças que afetam este grupo etário, constatamos que são predominantemente crónicas e múltiplas. De facto, nove das dez principais causas de morte eram, em 2017, doenças crónicas (Institute for Health Metrics and Evaluation, 2020).

Adicionalmente, e de acordo com dois diferentes estudos desenvolvidos em Portugal é elevada, aumenta com a idade e é inversamente proporcional aos níveis de educação (Prazeres & Santiago, 2015; Quinaz Romana et al., 2019). Associados a estas desenvolvem-se frequentemente processos de dependência, quer os mesmos decorram das limitações funcionais impostas pelas doenças, quer sejam decorrentes de deterioração cognitiva. Portanto, o problema não reside na simples existência das doenças crónicas, mas na “convergência” da morbilidade múltipla com a dependência e a fragilidade.

Precisamos, portanto, equacionar novas respostas as quais devem considerar não apenas a realidade que temos, mas também a que projetamos. Ou seja, requer-se uma intervenção estruturada em dois vetores: uma resposta aos atuais idosos; uma outra dirigida à população em geral (Lopes & Sakellarides, 2021).

A primeira visa dar resposta às excecionais necessidades da atual população idosa e deve ser estruturada com base num modelo de cuidados que privilegie a proximidade e a domiciliação (Lopes, 2021). Tal modelo deve compreender as seguintes dimensões:

  • Cuidados facilmente acessíveis, na comunidade, sem barreiras físicas (e.g., distância) ou financeiras. A acessibilidade não é entendida apenas como uma função do Estado, mas antes como o resultado da interação entre as características das pessoas, famílias, ambientes sociais e físicos, bem como, as características dos sistemas de saúde, organizações e prestadores de cuidados (Levesque et al., 2013)
  • Cuidados que assumem a responsabilidade pela saúde das pessoas na comunidade. Tal presume a manutenção das pessoas nos seus contextos, nomeadamente, no seu espaço sociofamiliar, mas também a responsabilidade de não ignorar nenhum contexto.
  • Cuidados centrados na pessoa ao invés de centrados na doença ou no órgão. Apesar de muito se ter escrito e dito sobre os cuidados centrados na pessoa, continua a ser claro que prevalece uma preocupação centrada na doença. Urge por isso adotar estratégias que alterem esta realidade. De entre estas destacamos o Plano Individual de Cuidados (PIC) enquanto instrumento centrado na pessoa, que se constitui como um espaço de diálogo entre todos os cuidadores e que apoia e facilita a gestão dos percursos e a integração de cuidados (Lopes et al., 2020)
  • Cuidados que garantam a integração e a continuidade. Como já referimos, se prevalece a multimorbilidade e a dependência, não podemos esperar que a resposta continue a ser estruturada em diferentes especialidades e profissões que pouco dialogam. Não podemos igualmente admitir que seja imputado às pessoas com maiores dificuldades no que concerne à literacia em saúde, mas também à funcionalidade, a responsabilidade por procurarem a resposta mais adequada à sua situação de saúde. Também neste caso o PIC pode ser um instrumento de grande utilidade.
  • Cuidados que assumem as pessoas como decisores e parceiros ativos na gestão da sua própria saúde (Boeckxstaens & de Graaf, 2011). Dando assim expressão não apenas aos cuidados centrados nas pessoas, mas também ao conceito de co-produção.

A segunda (dirigida à população em geral) deve privilegiar as intervenções de promoção e prevenção com vista à preparação para um envelhecimento ativo e saudável. Nesse sentido aplicam-se os critérios já atrás referidos relativas à promoção da saúde.

De referir ainda que o envelhecimento ativo e saudável, por norma, compreende três importantes dimensões, as quais devem ser tidas em consideração ao longo do percurso de vida: Saúde, Participação e Segurança (Grupo de Trabalho Interministerial, 2018).

Por último, uma referência ao conceito de “envelhecimento bem-sucedido” que na década de 90 do século passado era definido como baixa probabilidade de doença e incapacidade relacionada com doenças, elevada capacidade cognitiva e física funcional, e envolvimento ativo com a vida (Rowe & Kahn, 1997). Todavia, mais recentemente e decorrente do Harvard Study of Adult Development, concluiu-se que que uma das descobertas mais surpreendente é que os nossos relacionamentos e como estamos felizes nos mesmos, têm uma influência poderosa na nossa saúde. No final da vida, os modelos mentais de apego aos parceiros estão ligados ao bem-estar, ao mesmo tempo e ao longo do tempo (Waldinger et al., 2015; Waldinger & Schulz, 2010). Ou seja, e por outros palavras, os relacionamentos, particularmente os de proximidade/intimidade são poderosos preditores de bem-estar e de um envelhecimento bem-sucedido.

Percurso de vida, necessidades e expectativas das várias gerações

Pelo que acabámos de afirmar, a atenção ao processo de envelhecimento releva a importância do percurso de vida, ou seja, do desenvolvimento humano ao longo de todo o percurso. Da criança, ao jovem, às pessoas adultas, até à “idade do meio” – aquela idade esquecida daqueles que têm que simultaneamente preocupar-se com os filhos adolescentes e os pais já com problemas próprios do envelhecimento, com os primeiros sinais de cansaço nos órgãos dos sentidos, e com um emprego onde ou “se sobe ou se sai”. Em suma, O envelhecimento saudável é mais do que fugir à doença e evitar a fragilidade. Trata-se de como nos sentimos e de como está a nossa funcionalidade ao longo das nossas vidas. Trata-se de sermos capazes, ao longo da vida, de desenvolver as tarefas do dia-a-dia, de cuidarmos de nós próprios e dos que nos são próximos e de gozar de uma vida com um propósito e realização. Em suma, trata-se de continuar a andar, a pensar e a manter elevação de espíritos (Hanson et al., 2016; Kuh D, 2014).

Daqui decorre a necessidade de harmonizar as respostas às necessidades das diferentes gerações e evitar tensões indesejáveis entre elas. A atual diretora da London School of Economics, Minouche Shafik, publicou há cerca de um ano um livro sobre a necessidade de um novo contrato social, no qual revela um dado especialmente significativo - se perguntarmos à população de diversos países se pensam que os jovens atuais vão viver melhor que os seus pais, quase 80% dos chineses acham que sim, mas apenas menos de 20% dos britânicos e dos espanhóis pensam da mesma maneira (Shafik, 2021).

Segundo a referida autora a boa notícia, porém, é que é possível um novo contrato social que pode satisfazer a necessidade de segurança e de oportunidades das pessoas, ao mesmo tempo que enfrenta os desafios que afetam a sociedade como um todo. Este novo contrato social depende de três pilares: segurança, risco partilhado, e oportunidade (Shafik, 2021).

Também podemos afirmar que depende da capacidade de cuidarmos uns dos outros e de assumirmos que o cuidar é uma dimensão essencial da vida humana e se expressa pela preocupação, responsabilidade, reflexão e interesse por nós, pelos outros e por tudo que nos cerca (Lopes, 2022).