Centralidade do cidadão
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Centralidade do cidadão – na prática, o que é?
É frequente ouvirmos e lermos que há necessidade de se conceberem sistemas de saúde centrados na pessoa. Isto normalmente está contido em declarações políticas com o propósito de melhorar os cuidados prestados, assim como melhor otimizar a prestação dos profissionais (OECD, 2017; WHO, 2015). Por outro lado, a experiência reportada pelo doente quando acede ao sistema de saúde é já hoje considerada uma componente chave da qualidade dos cuidados prestados, a par com a efetividade, a segurança ou a equidade (Institute of Medicine, 2001; Klassen et al., 2010). No entanto, os grandes avanços na saúde das pessoas e na esperança de vida, nem sempre estão associados a uma diminuição das desigualdades. Segundo a OMS, a equidade no acesso exige, portanto, que todos tenham acesso aos serviços de saúde de qualidade de que precisam, quando e onde precisam (WHO, 2017).
É importante, no entanto, esclarecer a noção da centralidade das pessoas. Há anos atrás, havia quem, numa atitude defensiva, reagisse mal face a esta suposta novidade, exclamando, irritado: “E até agora estávamos centrados em quê? No gato?!” O que é certo é que a centralidade do cidadão está muito para além da afirmação “os meus queridos doentes”.
Esta noção, no entanto, está também longe de ser banal. Comporta múltiplas dimensões significativas, como a questão da personalização, da precisão diagnóstica e terapêutica, utilizando a vasta informação disponível para diferenciar um indivíduo de outros com situações eventualmente similares. Outras dimensões são o acesso à informação e aos cuidados de saúde e a capacidade de a pessoa gerir e ter controlo da sua saúde e do plano de cuidados, assim como a necessidade de gerir o seu percurso de cada pessoa através dos cuidados de saúde de que necessita, a chamada navegação no sistema.
Por outro lado, contribui também para uma melhor centralização do cidadão no sistema a determinação dos seus níveis de literacia para a tomada de decisões inteligentes sobre a saúde, e a qualidade da informação que recebem aquando da prestação de cuidados ou, em geral, pelo sistema de saúde. É também de realçar a participação dos cidadãos nas comunidades nas áreas relacionadas com a saúde, incluindo a relevância dada à medição da avaliação que os doentes fazem quando percorrem o processo de cuidados, e os aspetos de adesão terapêutica, prevenção e promoção da saúde
Assim, uma melhor compreensão dos cidadãos face à saúde e uma melhor e mais precisa informação prestada pelos profissionais e pelo sistema conduzem necessariamente a uma melhor literacia em saúde, e permitem contribuir para a redução das desigualdades em saúde e para uma melhor centralidade do cidadão no sistema de saúde.
Esta centralidade do cidadão inclui também a qualidade do atendimento nas unidades do SNS. É, assim, tempo de o SNS dispor de um novo Estatuto e implementar e organizar os sistemas locais de saúde previstos na Lei de Bases da Saúde de 2019.
Ganhos em saúde e preferências dos doentes
A personalização dos cuidados passa necessariamente pela incorporação na tomada de decisão da avaliação que cada doente faz da sua própria saúde e do impacto do tratamento. O conceito económico de agência, baseado nas assimetrias de informação, exige esta centralidade nos doentes de modo a se obter melhores decisões e uma melhor resposta de todo o sistema face às legítimas necessidades dos cidadãos. Participação é empoderamento (Nolte et al., 2020). Estes conceitos de participação e de resposta defendem que os cuidados que são coordenados em torno das necessidades das pessoas devem respeitar as suas preferências e permitir a sua participação nos cuidados de saúde de que necessitam (WHO, 2017).
Por outro lado, sabemos que a satisfação/insatisfação dos utilizadores com os cuidados impacta substancialmente na própria adesão terapêutica e, obviamente, no estado de saúde das pessoas e no recuperar de doenças.
Há que notar que estudos de medição da satisfação dos utilizadores dos cuidados prestados ou de cidadãos com experiência face ao sistema de saúde revelam ainda hoje situações preocupantes. Por conseguinte, é cada vez maior a necessidade de se ter em conta as preferências dos doentes para que se possa obter maior efetividade na prestação de cuidados.
Participação em saúde
A participação pública em saúde das pessoas com ou sem doença está prevista na Lei n.º 108/2019, de 9 de setembro. Nesta lei é aprovada a Carta para a Participação Pública em Saúde onde são reconhecidos aos cidadãos os direitos de participação em saúde, de serem considerados parceiros nos processos de tomada de decisão em saúde e de possuírem conhecimento e experiência específicos.
Promover a participação dos cidadãos em saúde implica reforçar estratégias e meios de apoio à literacia, à capacitação, e ao empoderamento, incluindo n avaliação sistemática on-line e por outros meios dos serviços e dos cuidados que lhes são prestados. Na mesma linha, haverá que desenvolver o sentimento de apropriação do SNS por parte de todos.
A literacia e a capacitação em saúde, relacionadas com o SNS, significa que as pessoas, como seus proprietários e beneficiários, são capazes de se envolver em decisões sobre política de saúde, sobre serviços e sobre a sua saúde pessoal. Tudo isto implica o acesso a informação e a conhecimento, e ter motivação e competências para fazer escolhas informadas e participar ativamente nessas decisões.
O acesso dos cidadãos aos cuidados em tempo aceitável está definido na Constituição da República Portuguesa e na Lei 41/2007, de 24 de agosto, que aprova a Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos utentes do SNS.
A pessoa deve assumir-se como gestor primordial do seu plano de cuidados. Para tal haverá que investir seriamente na promoção da sua literacia em saúde. No entanto, grande parte dos documentos para acesso aos cidadãos, utilizam ainda uma linguagem técnica que os torna difíceis de compreender (Rudd et al., 2000). Além disso, a comunicação entre profissionais de saúde e cidadãos é também fundamental para que cada cidadão entenda perfeitamente o que lhe está a ser informado (Nielsen-Bohlman et al., 2004).
A par com o acesso à informação é fundamental que as pessoas tenham literacia em saúde, representando o conjunto de competências cognitivas e sociais que determinam a motivação e capacidade individual de aceder, entender e utilizar a informação de maneira a promover e a manter um bom nível de saúde” (Nutbeam & Kickbusch, 1998). É, assim, importante a educação em literacia e em saúde ao longo do ciclo de vida, incluindo a adoção de estilos de vida saudáveis e a noção de tomada de decisão partilhada (Chew-Graham, 2017).
Uma maior literacia em saúde permite também uma boa gestão na doença crónica em que os objetivos específicos se focam principalmente em capacitar grupos específicos de pessoas doentes.
Dentro da literacia em saúde, podemos também realçar a literacia em saúde digital (eSaúde). Estão incluídos neste conceito a comunicação eletrónica entre um profissional de saúde e um cidadão, os registos médicos eletrónicos, os registos de saúde pessoais, os programas de educação em saúde, portais para o utente e as aplicações para doentes (Haggerty, 2017; Kim & Xie, 2017).
Hoje, existem meios para aumentar a literacia e a transparência, bem como desenvolver a comunicação sobre como navegar no SNS. Neste processo, o papel dos profissionais de saúde é crucial. No entanto, haverá que ter em conta que o modo como a literacia em saúde é promovida pelo sistema de saúde pode acentuar desigualdades sociais pré-existentes.
É um facto que os sistemas de saúde são complexos e muitas vezes confusos, dificultando a capacidade do cidadão comum de navegar no sistema (Griese et al., 2020). No entanto, a capacitação do cidadão para uma navegação adequada do sistema de saúde deve ser um objetivo geral a atingir.
Capacidade de gerir a própria saúde e de navegar no sistema
Um dos pressupostos para uma boa gestão da saúde é ter acesso à informação. É sabido (Lei n.º 12/2005, de 26 de janeiro, art.º 3º) que a informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, os resultados de análises e outros exames subsidiários, as intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação. Deste modo, é importante que a informação sobre os cuidados prestados flua naturalmente, com as necessárias proteções éticas, entre os vários pontos de acesso da pessoa ao sistema. No entanto, a forma fragmentada do sistema de saúde e dentro das próprias organizações de saúde não facilita, de forma alguma, a boa prestação de cuidados. A frase “não me toquem sem terem acesso a toda a minha informação de saúde relevante” tem de ser interiorizada por todos os cidadãos e, especialmente, pelos responsáveis do sistema de saúde.
Isto com maior relevo para aquele cidadão com múltiplas doenças de evolução prolongada. Isso pode ser mais bem concretizado através de um plano pessoal ou individual de cuidados, propriedade da própria pessoa, partilhado com os seus cuidadores ao longo desse percurso.
E isso ainda por uma outra razão. Ao longo desse percurso de cuidados ser-lhe-ão propostas prescrições e por vezes opções alternativas. Terá que ter sobre isso uma opinião, um ponto de vista, participar na decisão. Evitar que as prescrições propostas tornem a sua vida-de-todos-os-dias, catastrófica, impossível de gerir. E que alguns desses cuidados possam ser prestados na sua própria casa coordenadamente.
Integração e continuidade de cuidados centrados nas pessoas
Haverá que responder de modo equilibrado e adequado aos diversos tipos de necessidades ao longo do ciclo da vida. Isto é, harmonizar os objetivos prioritários para os cuidados à população envelhecida com os do desenvolvimento infantil e juvenil, e com as respostas necessárias às pessoas na “idade do meio”.
A integração de cuidados centrada nas pessoas implica transformar o SNS como um todo, incluindo a sua governação e repor e acrescentar meios nos pontos mais críticos. O SNS tem sido uma organização desligada, fragmentada por níveis de cuidados e silos institucionais, estes mesmos também organizados por silos. Estas separações repetem-se na ligação com as instituições sociais e da comunidade. A transformação deve basear-se em novas modalidades de trabalho em equipa, que incluam também o cidadão.
São muitas as pessoas com morbilidades múltiplas e várias formas de dependência e fragilidade que utilizam frequentemente serviços de saúde e que necessitam de uma continuidade e integração de cuidados. As respostas episódicas do passado já não são suficientes. Requerem cuidados integrados e com continuidade.
Intangíveis e SNS – valores, sentimentos e vontade
Os intangíveis, por definição, só podem ser geridos indiretamente. Por exemplo, através de inquéritos de opinião e pela análise qualitativa dos discursos das lideranças. Destes intangíveis há três que é necessário reconhecer para entender os sistemas de saúde: o da não-acomodação; as relações de confiança; e o sentido de pertença.
O primeiro intangível a considerar é o da não-acomodação aos contratempos e dificuldades para fazer o que é preciso. Há demasiadas pessoas que desistem de entender e de influenciar o mundo em que vivemos. Limitam-se a colher os frutos mais à mão e a acreditar em histórias que nunca aconteceram. Isso deve ser contrariado. Na Divina Comédia de Dante, obra escrita há já cerca de 700 anos, Dante reservou o pior, o mais quente dos apartamentos do seu inferno, não para os piores pecadores, mas para os indiferentes!
O segundo tem a ver com as relações de confiança. Dados publicados há alguns anos pela OCDE mostram que se perguntarmos aos dinamarqueses se têm confiança uns nos outros, cerca de três quartos respondem que sim. À mesma pergunta, um pouco menos de metade dos alemães respondem positivamente. Porém, só 20% dos portugueses respondem desse modo. Isto importa muito porque é difícil conseguir os níveis de cooperação necessários sem promover a confiança de uns nos outros e o apreço pelo trabalho dos outros. Aliás, a prestação de cuidados em saúde deve sempre ser encarada como uma relação de confiança ou mesmo de cumplicidade.
Finalmente, o sentido de pertença. Devemos olhar para o SNS como um património identitário, comum e solidário. É propriedade comum, é nosso. Julian Tudor Hart, um médico de família inglês famoso, dizia-o, com incomparável eloquência. Dizia que o SNS não é mais que uma extensão da nossa cidadania. Que materializa a nossa genuína preocupação pelos outros. E tinha razão.