Governação da saúde

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GOVERNAÇÃO DA SAÚDE (POLÍTICA; POPULACIONAL; CLÍNICA)
NÍVEIS, ARQUITETURA, CULTURA, MODELOS E PRÁTICAS | FORMAÇÃO CONTÍNUA DE DIRIGENTES

Notas explicativas

O mundo mudou, o país também. Porém, o Estado português e o seu modelo de governação, incluindo na saúde, pouco mudaram. Responder aos desafios do nosso tempo, implica atuar simultaneamente em várias vertentes: no modelo de governação sistémica; nos modelos de cuidados; na gestão institucional, lideranças clínicas e equipas; nas formação, atração e retenção de profissionais; na reorganização do SNS. No foco das mudanças devem estar sempre as pessoas e a população.

Requerem-se capacidade e instrumentos para gerir a mudança - investimento teórico, estratégico, técnico, instrumental e político. O futuro requer uma inteligência amplamente distribuída, com múltiplas fontes de iniciativa que interagem entre si, cooperando, por vezes competindo. Um novo modelo de governação da saúde deve convergir com as agendas de sustentabilidade, como as do clima e da segurança.

Temos que fazer muito melhor e existem condições para que assim seja. O primeiro passo é reconhecer que ainda trabalhamos no pressuposto das inteligências hierárquicas. Porém, há muito emergiu no mundo uma inteligência amplamente distribuída, onde coexistem múltiplas fontes de iniciativa, que interagem e, muitas vezes, colaboram entre si, e que precisam de ser enquadradas e direcionadas por diversos instrumentos, muitos deles delicados e suaves, atuando coordenadamente.

Tese

Superar fragilidades e relançar o SNS requerem convergência de: novo modelo de governação;
alterações estruturais e funcionais na administração e nos serviços; reforço criterioso de recursos.

Esta convergência requer dispositivos permanentes de análise e de direção estratégica e técnica e conhecimento para o fazer. São indispensáveis sínteses de conhecimento relevante e inteligência distribuída e colaborativa, que alimentem o desenho e a realização de políticas públicas capazes de transformar informação em ação, nos múltiplos domínios do sistema de saúde.

A governação do SNS deve combinar dois polos: central e local – com âmbito, alcance e funções distintas, mas complementares. Ambos servem os mesmos propósitos: conhecer e compreender as necessidades e desafios em saúde; compreender comportamentos e aspirações dos atores sociais; enquadrá-los e direcioná-los para alcançar os resultados desejados, através de um conjunto de instrumentos, uns notórios, outros subtis, aplicados combinadamente, para além das normas e das ações de comando-e-controlo. Tal implica um sistema organizado e permanente de formação contínua dos dirigentes do SNS.

Esta horizontalização da produção, de partilha e de utilização do conhecimento, permite transformar inteligência distribuída em inteligência colaborativa, sem a qual não é possível o desenvolvimento de sistemas complexos, como é o da saúde. Abordagens sistémicas e não fragmentárias, como aquelas que caracterizam as organizações temáticas verticais que predominam ainda na saúde, são uma forma efetiva de abordar a riqueza das interações irrecusáveis de um sistema de saúde capaz de cumprir a sua missão. Em síntese, trata-se da necessidade de um novo modelo de governação e governança na saúde.

Do Estado marreta ao Estado inteligente e o futuro do SNS

O SNS não deve ser uma simples repartição de um Estado Marreta, mas antes uma das joias-da-coroa de um Estado Inteligente. E este é um grande desafio, do qual depende, em grande parte, a sobrevivência do SNS. Para o ser, terá que superar a sua tradição de centralização e rigidez hierárquica, para descentralizar e tornar-se muito mais adaptado às diferentes circunstâncias locais. E terá que valorizar lideranças locais empreendedoras e disruptivas.

Esta transformação requer uma abordagem sistémica, não fragmentária, própria da complexidade (caracterização da gestão central e regional), bem como uma transição para uma lógica orçamental centrada na produção de bem-estar (e não em indicadores de produção simplesmente material). Para isso, devem ser instituídos dispositivos identificáveis de análise, de planeamento e de direção estratégica, com definição criteriosa de: locus, composição, atividade, referenciado nas decisões políticas e de gestão).

Não pode ter todos os seus recursos numa primeira linha dedicada ao imediato, ao curto prazo.

Precisamos de uma segunda linha onde se pense o futuro de país. Para não chegarmos tarde e mal preparados a esse futuro. Por outras palavras, são precisos dispositivos identificáveis de análise e planeamento estratégico nos ministérios. E esta é uma agenda urgente para o conjunto do governo.

O Ministério da Saúde não a pode abordar sozinho. E ela inclui necessariamente uma nova lógica orçamental. Em que os objetivos de bem-estar superam a estreiteza de metas orçamentais centradas essencialmente em indicadores genéricos de produção da riqueza. Vale a pena acrescentar que alguns países já começaram a trabalhar nesse sentido.
Governação clínica e de saúde – o foco nos resultados

- Resultados dos processos clínicos (outcomes research/valor em saúde)
- Resultados das estratégias/planos locais de saúde.

Interesse público e Saúde como bem de mérito

A saúde é um bem de mérito não transacionável. Alicerça-se numa dimensão existencial, pessoal e coletiva. Envolve relações interpessoais de interdependência e de ajuda. É um direito humano e, também, um fator de coesão e bem-estar social.
A cobertura e o acesso universal, bem como os valores da equidade e da qualidade, exigem que este bem seja acautelado e promovido como património comum e bem público. O serviço público de saúde tem estes propósitos. É expressão de um contrato de solidariedade e de coesão social, intergerações. É, também, condição para o desenvolvimento sustentável das sociedades.

Bem comum, papel do SNS, conflitos de interesses e sua gestão

A política de saúde deve ser orientada pelo interesse público. Os interesses privados ou corporativos, sendo legítimos, devem subordinar-se ao primeiro. Por isso é indispensável estabelecer e explicitar objetivos de saúde e de qualidade de cuidados e modular os modos como os serviços públicos e os agentes privados (sector social e agentes com fins lucrativos) podem e devem cooperar cocriando valor em saúde.

O SNS deve ser eixo e fator regulador e modulador do sistema de saúde, bem como a garantia que esforços individuais e coletivos se orientam, essencialmente, para objetivos e resultados de saúde e bem-estar. Tal exige, simultaneamente, uma atenção permanente ao sistema de saúde, um plano deinvestimento no SNS e uma estratégia de cooperação com o sector social e privado com fins lucrativos, adequadamente harmonizados. Julian Tudor Hart, em “The Inverse Care Law” (Lancet, 1971) evidenciou a necessidade da intervenção do todo social, do poder público, para regular dinâmicas e interesses no sector da saúde. Sem essa intervenção surgem grandes desigualdades e iniquidade.

As sociedades humanas atravessam transições diversas e os seus sistemas de saúde vão requerendo ao longo do tempo mudanças adaptativas, complexas, abrangendo o todo sistémico e não apenas partes deste. Nas democracias europeias, as modalidades de intervenção pública nos sistemas de saúde resultam de percursos históricos, sociais, económicos e culturais. Não decorreram de escolhas “à la carte”.

Em Portugal, o SNS é um património comum dos portugueses, produto da evolução histórica do país.

Deve contribuir para regular o “sistema” e o “mercado” da saúde para benefício de todos.

Hoje, mais do que nunca, é necessário melhorar o SNS, dotá-lo com melhor organização e gestão, com mais recursos e melhores cuidados, tornando-o mais integrado, coeso, adaptativo, ágil, eficaz, eficiente e seguro. Para tal, o SNS deve ser abordado e transformado como um todo sistémico cujas componentes e instituições estão estreitamente interligadas. As intervenções devem dirigir-se de modo concertado ao todo e às partes, numa ação complexa, liderada por uma equipa tecnicamente competente e que seja capaz de envolver todos os atores interessados.

Esta missão requer a definição de políticas públicas com metas concretas que permitam alavancar e mobilizar um amplo conjunto de processos de mudança visando alcançar os resultados desejados – produzir valor.

Valor em saúde, refere-se e mede-se, por exemplo, por anos de vida vividos com qualidade, livres de sofrimento, com bem-estar - para cada pessoa e para o conjunto da sociedade, custos suportáveis para esta.

Um novo modelo de governação reconhece a importância da forma como o conjunto dos atores sociais interagem na realização de objetivos e interesses comum. As mudanças necessárias requerem uma resposta social alargada.